domingo, 5 de junho de 2022

Bolsonaro e Juan Rulfo: comício ao pé da tragédia

Depois de mais um fim de semana de passeios de moto, provocações e inércia, diante do desastre das chuvas no Nordeste, o presidente Jair Bolsonaro chegou de avião em Recife, segunda-feira (30/5), quando os pernambucanos choravam seus mais de 100 mortos, e removiam escombros em busca de desaparecidos. Um ambiente de dor e desolação semelhante ao do conto famoso de “A Planície em Chamas” (Llanto en Llamas), do notável escritor Juan Rulfo, no México dos Anos 50.

Nosso mandatário – candidato à reeleição – desembarcou à semelhança do chefe político da narrativa de Rulfo: com ministros e seguranças, na cidade atingida por um terremoto. E, depois de um dia de discursos, promessas vãs, bebedeira, banquetes, tomam os carros oficiais de volta à capital, sem resolver nada. Alguns ainda levam o pouco que restara do desastre – galinhas e ovos recebidos “de presente” das vítimas do sismo.

Desgraças diferentes na forma e moldura (o tremor de terra na província mexicana e os temporais na capital pernambucana), cuja essência no conteúdo é a mesma: a arrogância do poder, a impiedade dos senhores do mando, a crença ingênua das vítimas. Além da insidiosa teia de enganos decorrentes da utilização política das tragédias, sobretudo se elas acontecem em períodos eleitorais.


Transmitida quase em tempo real pelas redes sociais, nos blogs e sites dos principais veículos de imprensa regionais e do país, o jogo de cena do “mito” e seus acompanhantes se deu desde o “sobrevôo nas áreas alagadas”, mas ganhou tons surreais na entrevista coletiva na cidade destroçada. Sem pisar na lama, na visita a título de “levar assistência e solidariedade” às vítimas, o “mito” fez da coletiva, um palanque de campanha.

Atacou o governador Paulo Câmara (PSB) que, sem ser avisado da visita presidencial ao estado, recebeu ofensas do mandatário. “Ele (o governador Câmara, aliado de Lula), preferiu ficar em casa, dormindo na cama, debaixo de lençol quentinho, em lugar de estar aqui, ouvindo as medidas e providências que estamos anunciando para o povo de seu estado”, disse, irritado, ao responder pergunta de uma repórter, ao lado dos ministros Marcelo Queiroga (Saúde) e Daniel Ferreira (Desenvolvimento Regional). “O momento não é de fazer política”, disse. E seguiu nas ofensas, tendo em sua companhia o prefeito de Jaboatão dos Guararapes , Luiz Medeiros, colega de partido, convidado ao ato. O prefeito de Recife, João Campos (PSB), a exemplo do governador, aliado e amigo do peito do presidenciável petista, também não participou do comício de Bolsonaro, no auge da maior tragédia em Recife, desde o desastre das cheias do Capibaribe, em 1975. “O prefeito de Jaboatão, meu amigo, conhece a região, e vai falar o que o governo federal tem feito, não só para seu município, independente da coloração partidária”, disse, antes do abrir o microfone às perguntas dos jornalistas. Depois pegou o avião de volta à Brasília.

No dia 31, antes de junho chegar, desceu no oeste da Bahia, a pretexto de participar da abertura da “Bahia Farm Show”, uma das mais importantes feiras do agronegócio no país. O presidente em campanha participou de motociata pela cidade, levando na garupa seu ex-ministro da Cidadania, João Roma, candidato a governador da Bahia, pernambucano de nascimento que não esteve na Recife devastada, na visita da véspera. Resta o pensamento do grande Juan Rulfo, antes do ponto final:”Vivemos em um terra onde tudo acontece graças à Providência, mas tudo acontece com acidez. Estamos condenados a isso”.Que venha então a Providência. E breve.

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