quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Boas cinzas

A Quarta-Feira de Cinzas marca o fim do carnaval cuja fórmula era o oposto do nosso cotidiano. Vejo eu mesmo com 14 anos, berrando com a minha turma um inútil: “É hoje só/ Amanhã não tem mais!”. Protesto e mantra daquilo que nos leva à lua nessas jornadas curtas - tão ligeiras e gozosas como a própria vida que passa, ela própria, como um carnaval.

Vivemos num mundo marcado pelo proibido e pelo “amanhã” - um futuro que justificava as negativas porque seria vivido como realidade. Menino e moço, eu não fui cidadão na “terra do nunca” como o mítico moderno Peter Pan, mas no país do “não”. Na terra no “não temos”, “não pode”, “não é possível”, “a lei não permite”, “proibido para menores de 18 anos” ao lado do “daqui a pouco eu faço...”. Essas foram as expressões que - sem exagero - eu mais ouvi na minha rotina caseira, escolar e religiosa, bem como quando estava com a minha “turma” na esquina da rua Dr. Romualdo com a avenida Rio Branco, em Juiz de Fora; ou no “muro branco” de Icaraí, aqui em Niterói.


Em casa, eu internalizava o não entrelaçado ao “tenha muito cuidado”, essa outra dimensão da vida moral brasileira. A “turma” que competia com a minha família e aliava a vivência de proibições permanentes me dava uma certa saúde mental, embora tivesse também suas formas de negação e limites. Nela, eu aprendi o significado do pecado e do correto - essas dissimulações do velho não.

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Nascemos no mundo do controle. É proibido fumar, a mentira é descoberta no olhar das pessoas e até o vento e a chuva (vindos de fora) - tal como os desconhecidos - são perigosos. Um universo de proibições e restrições permeia nossa morada. O perigo moral ronda o mundo. Muito antes de ler Guimarães Rosa, eu sabia que viver era muito perigoso. É claro que era! Nesse nosso Brasil, tudo - até mesmo usar calça comprida e fazer a barba - era regulado. Quando apareci na turma usando um sapato sem cadarço, perguntaram se, na loja onde eu o havia comprado, vendiam artigo para homem! Homem deveria ser duro, calado e feio. Não poderia usar camisa colorida nem sentar juntando as pernas. Se você apreciasse filmes musicais, você era imediatamente colocado no “gelo”. Ninguém seria seu amigo porque todas as pontes potenciais eram tão condenadas quanto as “desquitadas” num país que, em matéria de casamento, a questão básica não era se ele deveria durar para sempre, mas ser tão eterno quanto o outro mundo. As pessoas não escolhiam casar; era o casamento que as escolhiam.

Hoje, eu vejo que esse Brasil do não, do proibido e do amanhã estava centrado numa religiosidade cuja promessa era o paraíso a ser conquistado pelos obedientes, pelos pacientes, pelos que aceitavam o seu lugar - mesmo quando eram escravos, desviantes, marginais ou miseráveis. Neste mundo, tudo é proibido, mas, em compensação, “no céu”, no paraíso, no verdadeiro mundo real que era ironicamente o outro mundo, havia a felicidade eterna ao lado dos anjos, dos santos e de Deus. O paraíso seria a terra sem fronteira do sim.

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Este mundo e o outro formam as margens ideológicas do imenso rio nacional. Num lado, fica o sim da minoria dos que podem fazer tudo; do outro, há o não da maioria proibida de tudo fazer. Seria o carnaval, essa festa sem centro ou sujeito, uma rosiana terceira margem?

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No país do carnaval, há uma pergunta que não quer calar: por que, com toda essa roubalheira abusiva e nessa falência estrutural de serviços públicos essenciais, os brasileiros não reclamam em bloco e o País não explode numa reversão momesca?

Seria porque nas sociedades densamente antimodernas, fundadas na mais profunda opressão, existem mecanismos sociais de evasão, de compensação e de mistificação - válvulas de escape bem estabelecidas, como o carnaval?

Nesse caso, o carnaval seria o momento festivo do “sim” e do “pode tudo” na terra do não. E, como a liberdade licenciosa do reino de Momo está relacionada ao riso, ao canto, à dança, e aos desfiles nos quais os subordinados viram deuses e os ricos os aplaudem dos seus luxuosos camarotes, o carnaval é um drama fugaz que reverte o cotidiano. Tal teatro tem que terminar em cinzas.

Percorremos mais um carnaval. Fomos da opulenta carne fantasiada e sensualizada (boa de comer) dos desfiles, blocos e bailes, onde a regra é exibir sem vergonha todos os excessos. Sobretudo o de ter o direito e nada fazer num sistema que foi tocado a escravidão.

Não há como todo esse fogo não terminar em cinzas. Nesta pungência fria da morte.

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