O caso do youtuber é uma amostra da desumanização que se instalou nas redes sociais. Os direitos fundamentais das pessoas são atacados, os valores sociais são menosprezados, a intimidade é pisoteada. Como diz o coordenador do curso de pós-graduação de Marketing Digital de La Salle, Ricard Castellet, as redes sociais são uma ferramenta com dois polos: “Amplificaram os fatos puníveis, alguns muito tristes, mas também desenvolveram fluxos de comunicação e de conhecimento, contribuindo para que circulem e se democratizem como nunca. O problema está no uso que fazemos. São fantásticas, mas, se receberem um mal-uso, são plataformas perigosíssimas à convivência”.
As redes sociais nasceram antes do que pensamos. O advogado norte-americano Andrew Weinreich é visto como o criador da primeira em meados dos anos noventa do século passado. Ele a batizou de Six Degrees (Seis Graus), evocando a hipótese de que qualquer pessoa pode estar conectada a outra através de uma cadeia de conhecidos com no máximo seis ligações. Weinreich vendeu sua empresa em 1999, pouco antes da queda das companhias pontocom e apenas cinco anos antes de que Mark Zuckerberg e seus sócios fundassem o Facebook, a mais popular das redes sociais contemporâneas, com mais de 2 bilhões de usuários.
Para grande pare da legião de adeptos, usar bem essas plataformas é uma matéria a ser cumprida. Publicar vídeos que incitam o ódio, cortejam a xenofobia e fomentam a violência e o sexismo não são somente reprováveis ética e socialmente, como podem ter consequências penais. Muitos usuários não são plenamente conscientes. “É preciso se vacinar contra a ingenuidade”, diz o especialista em Direito Digital Ricardo Oliva, que pede o reforço da educação digital nos colégios para evitar que sejam cometidas humilhações, vexames e atentados contra a intimidade com um clique.
Em abril, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa aprovou um relatório coordenado pelo ex-senador espanhol socialista José Cepeda que fazia uma pergunta inquietante: as redes são conexões sociais ou ameaças aos direitos humanos? O documento questionava o modelo de negócio da Internet, baseado em reunir dados pessoais. É esse o preço a ser pago pelo acesso aos serviços? Como evitar o controle sub-reptício?
Em teoria são inócuas, mas podem mudar e mudar até se tornarem máquinas perversas. O cientista britânico Tim Berners-Lee aproveitou o 30° aniversário da World Wide Web para refletir sobre os acertos e erros derivados de sua invenção. “Ainda que a web tenha criado oportunidades, dando voz a grupos marginalizados e tornando nossas vidas mais fáceis, também criou oportunidades para os vigaristas, deu voz aos que proclamam o ódio e tornou mais fácil cometer toda a espécie de crimes”.
A funcionária da fábrica Iveco localizada no distrito madrilenho de San Blas-Canillejas que se suicidou no final de maio após a divulgação maciça de um vídeo sexual gravado há cinco anos é um exemplo paradigmático dos efeitos ominosos das plataformas digitais. A empregada da empresa, de 32 anos e mãe de duas crianças, de 4 anos e 9 meses respectivamente, não pôde suportar o assédio que recebeu no trabalho, os cochichos de seus colegas e a pressão ambiental pelo vídeo se tornar viral através de grupos de WhatsApp. A investigação judicial determinará as responsabilidades por essa trágica morte. Mas a lei é muito clara. “Ver um vídeo com essas características é uma questão moral, exibi-lo é uma questão legal”, diz a especialista em comunicação digital e professora da Universitat Oberta da Catalunya Raquel Herrera, que vê nesse terrível acontecimento uma evidente carga machista. A fanfarrice, a cultura da exibição, é masculina. “Em muitas situações ainda se considera que um homem é um campeão se tem muitas conquistas, mas em uma mulher parece um crime. Há muita gente que procurou o vídeo por pura morbidez. É fácil um conteúdo mórbido se tornar viral. Se as pessoas soubessem que divulgar esse tipo de imagem é crime, não o fariam”, diz Herrera.
O Código Penal espanhol deixa pouca margem à dúvida. O artigo 197 é extremamente claro quando diz que será punido com uma pena de 3 meses a 1 ano de prisão e multa de 6 a 12 meses aquele que sem autorização da pessoa afetada “difundir, revelar e ceder a terceiros” imagens e gravações audiovisuais privadas, até mesmo no caso de terem sido obtidas com seu consentimento. Parece óbvio que no terrível caso da Iveco a lei foi desrespeitada e a intimidade pessoal foi gravemente afetada. O dano foi de tal dimensão que levou a funcionária a tomar uma decisão drástica. O advogado Oliva considera que as pessoas que contribuíram à distribuição do vídeo deveriam ser investigadas por crime de revelação de segredo e ataque à intimidade.
Até a reforma do Código Penal de 2015, só se punia a difusão de fotografias e vídeos se fossem feitos sem a autorização do interessado e fossem imagens roubadas. O detonador do endurecimento tem nome próprio: Olvido Hormigos. Em 2012 era vereadora da cidade de Los Yébenes (Espanha). Denunciou seu ex-companheiro por divulgar um vídeo erótico que circulou pela Internet rapidamente. Mas não ocorreu crime contra a intimidade porque não foi roubado e gravado ilicitamente. O Código Penal daquela época dizia que o crime de revelação e divulgação de segredos só existiria se as imagens divulgadas fossem obtidas ilicitamente. Não era o caso de Hormigos.
Nas redes sociais as condutas privadas confluem com as sociais. “Há uma falsa aparência de privacidade", diz o professor da Universidade Complutense Arturo Gómez Quijano, que observa como a lei da simplicidade domina na Internet. “O julgamento é imediato, eliminando matizes e profundidade. Os veículos de comunicação precisaram de informação sobre o que aconteceu na tragédia da Iveco antes dos juízes, e as redes, antes da imprensa. Transformamos essas plataformas em um fim, quando na verdade são um meio”. No mesmo instante em que o vídeo cai na Internet e no Facebook perde-se seu controle. Estoura. Sua difusão pode adquirir uma dimensão global.
O desconhecimento por parte dos usuários é monumental. “Temos um problema de pedagogia e educação das redes”, diz Castellet. “Estamos diante de uma revolução da comunicação. Uma mudança radical. Em 10 anos usos e costumes se modificaram. A sociedade está aprendendo a utilizar essas plataformas e deveria existir formação obrigatória no colégio para ensinar as possibilidades negativas das redes e seus perigos. É preciso educar na escola e na família para que o uso seja coerente e racional”.
Utilizar incorretamente essas plataformas é nocivo à convivência. De modo que ganhou importância uma corrente de opinião que pede maior regulamentação da Internet e das redes sociais. “Se esses canais são utilizados para destruir a reputação de uma pessoa, é preciso ter normas”, diz Castellet. Para evitar situações dramáticas, não são poucos os que pretendem ativar no ecossistema de trabalho manuais de boas práticas. Essas barreiras contra incêndios seriam, de acordo com Raquel Herrera, uma garantia dos direitos e deveres das empresas para proteger a reputação de seus funcionários.
As mudanças tecnológicas avançam a um ritmo vertiginoso e a sociedade não os assimila com a mesma celeridade. Gómez Quijano utiliza uma metáfora: “As pessoas não são capacitadas para dirigir uma Ferrari, e isso gera problema importantes”. As redes sociais são uma ferramenta muito poderosa para que os usuários não tenham formação. “Isso está explodindo em nossas mãos e vamos aprendendo por tentativa e erro”, acrescenta. A dualidade emissor-receptor dos meios tradicionais já não serve. “O receptor antes era passivo, mas agora demos a ele a máquina de responder. A sociedade está presa em um ecossistema hiperconectado, com suas vantagens e inconvenientes. Não temos experiência e conhecimento acumulado. Nas redes sociais se perdeu a sensação de privacidade e intimidade. Medimos muito o quantitativo, mas é preciso educação para hierarquizar e dar importância ao qualitativo. Até agora, a tribo soube educar, mas pela primeira vez na história não está sabendo assumir essa função pedagógica”.
Essa carência, misturada com uma clamorosa ignorância e um ilimitado afã de notoriedade, é um coquetel explosivo que alimenta as redes com produtos tóxicos para ganhar adeptos a qualquer custo. Até mesmo com passatempos macabros. Muitos adolescentes participam de desafios violentos, testes extravagantes e ridículas competições para ampliar seu grupo de seguidores online. Pela web circulam vídeos onde os jovens rivalizam com jogos selvagens. Uma das últimas modas consiste em apertar o pescoço de uma pessoa para provocar o desmaio por asfixia, uma atrocidade que convive na Rede com outros desafios absurdos, como besuntar o corpo com álcool e tocar fogo, ferimentos autoinfligidos e passar de um quarto ao outro pela varanda dos hotéis.
É justamente essa falta de formação e aprendizagem no uso das redes que torna os usuários altamente manipuláveis, de acordo com Gómez Quijano: “Somos previsíveis porque as empresas nos conhecem. Damos nossa intimidade a elas de presente. O Facebook e o WhatsApp são um gigantesco ouvido. Sabem tudo o que dizemos”. Para mitigar esse poder onímodo, o Conselho da Europa dá uma receita: estabelecer fórmulas de cooperação entre as redes sociais e as autoridades públicas como antídoto aos venenos do ciberespaço: a intolerância, a desinformação, a incitação ao ódio, os ataques à privacidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário