quarta-feira, 23 de abril de 2025

Harvard resistirá

Nasci numa família amazonense que “se mudou” para Niterói. Cresci ouvindo exclusivamente português. Na varanda da casa do Ingá, em Niterói, meus tios discutiam política debaixo de um cauteloso silêncio de vovô, que foi desembargador, e de meu pai. Eram funcionários públicos e getulistas. Meus pais choraram muito quando Vargas cometeu seu suicídio de honra.

O mundo era grande. Na nossa casa de classe média não havia livros; havia, contudo, a música do piano da mamãe. Um cunhado do meu querido tio Mário visitou os Estados Unidos e, nessa varanda, deu uma entrevista confirmando muitas coisas que víamos no cinema.

Fui o primeiro de três gerações a viajar para o exterior, graças a minha entrada no universo democrático das pesquisas em antropologia do Museu Nacional. Lá encontrei a acolhida, a energia e o profissionalismo de Roberto Cardoso de Oliveira, que me ensinou a escrever e perseverar, como fazem os mestres verdadeiros. Seu objetivo não era nos tornar militantes, mas conhecedores das origens e correntes da pesquisa antropológica.


Harvard entrou na minha vida quando um de seus docentes, David Maybury-Lewis, se associou a meu mentor numa pesquisa cujo objetivo era estudar comparativamente sociedades tribais de língua jê, duas das quais haviam sido descritas pelo pesquisador alemão Curt Nimuendajú. Maybury-Lewis foi o primeiro e estudar a organização social dos xavantes e havia escrito um importante artigo teórico sobre os apinajés, que eu havia visitado em 1962.

Esse é o encadeamento que explica como um caipira niteroiense — cuja imensa curiosidade só era emparelhada a sua ignorância — foi parar em Harvard em 1963-64 e em 1967-72, quando finalizou seu doutorado. Ali viveu uma visão cosmopolita da antropologia por meio de professores e colegas que estudavam sociedades tribais em todo o planeta. Ali também entendeu que, em Harvard, era normal ler dois ou três livros por semana para discuti-los em seminários a que ninguém chegava atrasado.

Uma lembrança marcante de Harvard é meu nome. Ninguém me chamava de Roberto. Virei “Mr. DaMatta”. Como sou mais do mato do que da morte, adotei feliz o DaMatta.

Percebi o imenso prestígio de Harvard no contexto do competitivo sistema universitário e intelectual americano quando um colega me informou que um ph.D. harvardiano garantia um emprego. De fato, recebi e recusei uma oferta. Devia minha carreira ao Museu Nacional e ao Conselho Nacional de Pesquisas. No museu, permaneci de 1959 a 1986. Nos infames Anos de Chumbo, sofri preconceito político, mas institucionalizei o Programa de Antropologia Social que lá existe, transformando colegas bolsistas da Fundação Ford em professores da UFRJ. Contra o chumbo, usei o “Veritas” (lema de Harvard) que, bem sei, está nua no fundo de um poço.

Em abril de 1964, um amigo ligou informando que fazíamos nossa revolução cubana. Minutos depois, ouvi que era um golpe militar. Como, se os militares não figuravam na minha politizada lista de atores políticos — exceto no realismo do meu reacionário pai? Apresentei as teorias de um fundador da antropologia. A professora Cora Du Bois, ex-aluna de Franz Boas, comentou:

— Mr. DaMatta, sua exposição foi ótima. Mas o que você acha das ideias desse autor, você concorda com elas?

Não sabia o que dizer.

Na primeira vez que entrei na Biblioteca Widener, na época a maior do mundo, fui avisado:

— Roberto, tenha cuidado com o labirinto de estantes. Um aluno lá se perdeu e foi achado semanas depois, faminto como um náufrago.

Nevava muito, e perguntei se teríamos aula.

— Harvard não para desde 1636!

E não vai parar diante de um presidente mal-educado. Hoje, eu, niteroiense, correria o risco de não entrar em Harvard. Meu conforto é que Donald Trump lá jamais seria aceito.

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