De um ponto de vista estritamente pessoal, nem posso me queixar. O ano foi bom comigo. Trabalhei, encontrei amigos, viajei, me diverti com os gatos. Mamãe ganhou uma quantidade de campeonatos de natação pelo país e pelo mundo, minha neta mais velha está sendo aceita por diversas universidades americanas e tem boas ofertas de bolsas de estudo, os pequeninos estão cada vez mais engraçados e criativos. De ponta a ponta a família está bem e com saúde, com os altos e baixos que conhecemos, um aperto financeiro aqui, uma crise ali, vida normal.
Mas é difícil ser feliz quando o mundo está caindo, quando o ódio é uma presença sólida no horizonte, quando há tanta gente em volta que perdeu o emprego, que teve que fechar a loja, que desistiu de um negócio, que não sabe quando o estado paga.
Felicidade até existe da porta para dentro, mas ninguém consegue ser feliz de verdade se o mundo não estiver feliz, ou se não existir, pelo menos, a vaga noção de que o mundo pode talvez um dia quem sabe ser feliz; que o mundo está indo numa boa direção, caminhando em busca da paz e de um ideal de contentamento — tudo o que não tivemos neste ano, e que, a julgar pelo que se viu até aqui, não teremos tão cedo, se é que um dia tivemos.
“Il y aura toujours un chien perdu quelque part qui m’empêchera d’être heureuse”, diz uma personagem de Jean Anouilh ao desistir de um amor rico e voltar para a família pobre: haverá sempre em algum lugar um cão perdido que me impedirá de ser feliz. Alguns anos depois, Edith Piaf incorporou a frase a uma de suas canções, “Et pourtant”, acrescentando um “pauvre” ao “chien perdu”, coitado dele.
Pobres dos cães perdidos, pobres de nós.
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Eram gente de idade, professores, engenheiros, militares reformados, sobreviventes do antigo regime que não conseguiram surfar a onda da abertura econômica e ficaram às margens do novo tempo — exatamente as pessoas que Svetlana Alexijevich ouviu em “O fim do homem soviético”, um dos grandes livros que li este ano.
Consegui conversar com dois ou três, numa colcha de línguas quebradas que dividíamos. Palavras, a rigor, nem eram necessárias. Bastava olhar para eles, e para a sua pobre mercadoria, para perceber o que tinha acontecido.
Eles não me saíram da cabeça desde então, mas a sua lembrança tem estado cada vez mais presente. Leio as notícias desse monstruoso calote que o governo está dando nos funcionários, e penso naqueles velhinhos amargurados e sem perspectivas.
Estamos caminhando para isso; não sei se o fato de não termos inverno chega a ser um consolo, ainda por cima diante desse verão abrasador.
Que mundo.
E que ódio.
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Não é em qualquer lugar do mundo que o maior empreiteiro vai em cana; não é em qualquer lugar do mundo que um ex-governador e sua mulher passam o Natal atrás das grades. Nunca pensei que, no tempo da minha vida, eu pudesse ver gente rica e poderosa ir presa no Brasil, ainda por cima por corrupção.
Ainda assim, acho que não basta ver todos esses figurões na cadeia. É edificante saber que a impunidade está diminuindo, mas sem a devolução de cada centavo roubado aos cofres públicos as punições acabam deixando muito a desejar.
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Millôr dizia que um homem público que se cerca de homens mais inteligentes do que ele é mais inteligente do que eles. Temer, por esse parâmetro, é burro, muito burro. É óbvio que não foi ele quem fez a lista de compras do avião da presidência, mas foi ele quem escolheu a pessoa que escolheu a pessoa que escolheu a pessoa que fez a lista — uma sequência de gente sem noção, que não entende a impopularidade do governo e o momento pelo qual o país está passando.
Gastar de forma obscena é tradição antiga nos palácios de Brasília, mas não está na hora de tomar Romanée-Conti, está na hora de cortar custos e de prestar satisfações à população, que não aguenta mais apertar o cinto enquanto os nababos se refestelam à sua custa.
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Feliz Ano Novo, amigos. Que 2017 tenha alguma consideração conosco e nos traga, se não for pedir muito, um pouco de paz.
Cora Rónai
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