terça-feira, 9 de agosto de 2022

Com foco no curto prazo, Brasil vende o futuro

O governo de Jair Bolsonaro opera em 2022 com o foco em medidas de curto prazo para melhorar a popularidade do presidente, não importando o efeito sobre a credibilidade das instituições fiscais do país. Iniciativas com horizonte de poucos meses terão impacto duradouro. Há reduções de impostos baseadas no pressuposto de que o aumento corrente de receitas será permanente, afetando a situação fiscal futura de Estados e municípios. Elevações de gastos previstas para vigorar apenas no segundo semestre devem se perenizar. Há ainda adiamento de despesas - caso dos precatórios - que poderão gerar uma bola de neve de dívidas nos próximos anos.

Algumas dessas medidas foram tomadas por meio de Propostas de Emenda à Constituição (PEC), banalizando um instrumento que deveria ser usado de modo criterioso. Para completar, iniciativas de estímulo à demanda ocorrem num ambiente em que o Banco Central (BC) se esforça para derrubar uma inflação que roda na casa dos dois dígitos há quase um ano. Com isso, os juros terão de ficar mais altos por mais tempo.


Um dos resultados dessa estratégia populista é turvar o cenário à frente. Em julho, o Indicador de Incerteza na Economia (IIE) da Fundação Getulio Vargas (IIE) subiu pelo terceiro mês seguido, atingindo 120,8 pontos, um nível historicamente elevado - números acima de 110 pontos são considerados altos.

Para o economista Livio Ribeiro, sócio da BRCG Consultoria, está em construção um quadro futuro recheado de dúvidas - nas receitas, nas despesas e nas regras fiscais gerais. Ele ressalta o aumento do custo médio do endividamento do governo. Nos 12 meses até junho, o custo médio da dívida pública federal ficou em 10,9% ao ano, bem acima dos 7,18% de junho de 2021.

“O perfil das receitas é perigoso”, adverte Ribeiro, também pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). Há uma piora das perspectivas para os preços de commodities que ajudaram a engordar os cofres públicos, como petróleo e minério de ferro, dada a perda de fôlego da economia global.

O cardápio de medidas populistas patrocinadas pelo governo Bolsonaro é extenso. Os efeitos de algumas decisões serão sentidos muito além do segundo semestre, podendo atingir a situação estrutural das contas públicas. Um dos exemplos emblemáticos é o limite imposto aos Estados para cobrança do ICMS sobre itens como energia elétrica e combustíveis, para derrubar a inflação no curto prazo. Ribeiro diz que as mudanças no ICMS abrem um buraco potencial nas receitas de Estados e municípios de cerca de R$ 70 bilhões por ano.

“Está aberta uma crise federativa”, resume ele, lembrando que a lei aprovada pelo Congresso sobre o assunto é uma interferência federal num tributo estadual. A alta recente da arrecadação se deveu especialmente à inflação elevada e à alta dos preços de commodities, combinação que não deve se repetir em 2023. Num cenário de desaceleração global mais intensa, como a esperada daqui para frente, as perspectivas para as cotações de produtos primários não são das melhores, por exemplo. Nas contas de Ribeiro, uma queda de 10% dos preços em reais de petróleo e de minérios reduziria a arrecadação anual de União, Estados e municípios em R$ 42 bilhões.

Como haviam alertado especialistas em contas públicas, o limite imposto ao ICMS foi judicializado pelos Estados. São Paulo, Maranhão, Piauí e Alagoas conseguiram liminares no Supremo Tribunal Federal (STF) para compensarem a perda de receita com a redução do ICMS sobre esses itens, suspendendo o pagamento das prestações da dívida com a União.

A principal aposta do governo para reeleger Bolsonaro é a chamada PEC Kamikaze. A um custo de R$ 41,5 bilhões, que ficará fora do testo de gastos, a proposta elevou o valor do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, instituiu um auxílio aos caminhoneiros e uma ajuda aos taxistas e dobrou o vale gás. De cunho obviamente eleitoreiro, as medidas valem até o fim do ano, mas pelo menos o Auxílio Brasil de R$ 600 deve ser perenizado - tanto Bolsonaro quanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já afirmaram que o valor será mantido em 2023.

O programa deve custar R$ 141,8 bilhões no ano que vem, considerando a manutenção do valor em R$ 600 e a incorporação de quem tem direito ao benefício e estava na fila, diz Ribeiro. É um montante R$ 52,7 bilhões maior que os R$ 89,1 bilhões do Auxílio Brasil original, com valor de R$ 400.

Ribeiro ressalta ainda um ponto que tem ficado em segundo plano: os esqueletos fiscais que serão deixados para os próximos anos. É o caso dos precatórios da União, cujo pagamento anual foi limitado por uma PEC aprovada no fim do ano passado. Com isso, a quitação de uma parcela significativa das sentenças judiciais é adiada para os anos seguintes.

O foco do governo está em iniciativas para tentar melhorar a popularidade de Bolsonaro, sem preocupação com o custo ou com as suas consequências. “Com tanta mudança de regra, perde-se a capacidade de antecipar”, afirma Ribeiro. “Esse é o grande problema. Como se planejar desse jeito?” Medidas tomadas de improviso aumentam a incerteza e dificultam a capacidade de planejamento na economia, o que prejudica em especial o investimento. Os estímulos de curto prazo poderão fazer a economia crescer algo entre 1,5% e 2% neste ano, mas para 2023 a desaceleração deve ser forte - Ribeiro projeta 1,5% em 2022 e 0,1% no ano que vem.

“Estamos vendendo o futuro”, diz ele, preocupado com o fato de os “anabolizantes de curto prazo” nublarem um debate importante: “Ao contrário do que o governo prega, não vemos fatores de dinamização estrutural da economia: estamos presos em uma armadilha de baixo crescimento”, afirma Ribeiro. Ele nota que o país não conta mais com o bônus demográfico, uma vez que a população em idade de trabalhar passou a crescer a um ritmo inferior ao da população total. Isso significa que se encerrou a fase mais favorável da estrutura etária do país ao crescimento. “Além disso, a acumulação de capital fixo é insuficiente, não somos bons em capital humano, ainda que se tenha melhorado um pouco, e temos baixa produtividade”, enumera Ribeiro, emendando uma pergunta incômoda e hoje sem resposta: “O que fará a economia brasileira crescer de forma sustentável?”

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