sábado, 29 de agosto de 2020

Meu amigo Waldemar

Estou em Inhambane. Sento-me num estreito banco de pedra para assistir ao espetáculo das baleias brincando no mar. Faz agosto, um vento frio arrepia a luminosa pele do Índico. Waldemar Bastos morreu há poucos dias e ainda não consegui assimilar a má notícia. Coloco os fones e, enquanto o ouço cantar Sofrimento, vejo a vida fluir, como um rio sonâmbulo: os dias felizes e os dias ferozes, a luz e as sombras de um país chamado Angola, desde a independência até ao estranho presente em que continuamos confinados.

Lembro-me com precisa clareza da primeira vez que escutei a música de Waldemar Bastos, no álbum Estamos Juntos. Foi em 1983. Eu estudava Agronomia em Lisboa. Aquele disco foi uma revelação e um bálsamo, ao abrir imprevistas janelas de luz sobre uma Angola sufocada por uma guerra interminável. Waldemar traduzia em sons uma fina rede de afetos, que começava em Liceu Vieira Dias e os seus maravilhosos Ngola Ritmos, fundadores da música popular urbana de Angola, e terminava, do outro lado do oceano, em Chico Buarque.

Susa Monteiro

A partir dos anos 1990, passei a encontrar Waldemar, com certa frequência, em eventos culturais, reuniões e manifestações de angolanos, ou no restaurante que manteve por alguns anos no Bairro Alto, o Água do Bengo, onde Laureana, a sua companheira de sempre, servia o melhor funge de Lisboa.

Waldemar não escondia a revolta e o desgosto de ver o país dividido, saqueado e desgovernado. Durante décadas, enfrentou pressões do regime de José Eduardo dos Santos, que incluíam desde a interdição das suas canções nas emissoras públicas a violentas campanhas de insultos e calúnias, a par com inúmeras tentativas de aliciamento. Nunca se calou. Nunca se deixou comprar, nem pelo regime, nem pela principal força da oposição. Ao mesmo tempo, foi apoiando sempre todas as iniciativas visando a pacificação e a democratização do país. Marchei ao lado dele, em manifestações que não reuniam mais de quinze almas inconformadas, e noutras, muito mais raras, entre centenas de pessoas, como em Lisboa, em 2015, nos protestos contra a prisão de Luaty Beirão e dos seus companheiros.

(...) mostra o desconforto com que uma parte da sociedade angolana continua a encarar um artista cujas opiniões diretas e fortes, não só em relação à política mas também à cultura, chocavam com o discurso oficial ou dominante

Em 2018, Waldemar Bastos recebeu o Prémio Nacional de Cultura, que é, em Angola, o mais importante reconhecimento público da obra de um artista. Há muitos anos que a qualidade do seu trabalho vinha sendo admirada no exterior. O seu melhor álbum, Pretaluz (1997), foi produzido por Arto Lindsay e publicado pela Luaka Bop, a editora de David Byrne especializada em música do mundo. Classics of my soul (2017), que junta alguns temas clássicos do cancioneiro angolano, como Muxima, Mbiri! Mbiri! e Humbi-Humbi, com outros da autoria do próprio Waldemar, como Velha Chica ou Teresa Ana, foi gravado com a colaboração da Orquestra Sinfónica de Londres. Richard Bona, o famoso baixista camaronês, considerava-o o melhor cantor e compositor angolano.

O Jornal de Angola deu grande destaque à morte do cantor, com um título que soa quase como um pedido de desculpa: “Morreu o músico que fazia arte para melhorar a política”. Um dia mais tarde, contudo, a bancada do MPLA na Assembleia Nacional inviabilizou um voto de pesar pela morte de Waldemar, apresentado pelo maior partido da oposição, a UNITA. O gesto, em bizarra contradição com a política de pacificação e reconciliação de João Lourenço, expõe as divisões no partido governamental e mostra o desconforto com que uma parte da sociedade angolana continua a encarar um artista cujas opiniões diretas e fortes, não só em relação à política mas também à cultura, chocavam com o discurso oficial ou dominante.

Dói-me a morte de Waldemar, porque sei que partiu cedo demais, quando ainda tinha para nos dar tantas canções. Vou sentir a falta dele, da sua paixão, das suas opiniões tantas vezes excessivas e contraditórias, da sua ironia, da sua alegria, do seu carinho pelo povo mais humilde de Angola.

Esta tarde, as baleias não vieram. Tiro os fones, levanto-me e afasto-me a assobiar a melodia de Sofrimento. Um homem cruza o meu caminho. É alto, com um chapéu preto tombado sobre o rosto. A última luz do dia atira a sua sombra para longe, de encontro aos coqueiros, que se inclinam numa vénia, voltados para o mar. Suspendo o assobio e logo o homem recomeça onde eu parei. Senha e contrassenha.

Corpos decaem e morrem — a música não. Música é ar em movimento, luz em movimento. Waldemar deixou-nos toda essa luz, que caminha agora à nossa frente.

Obrigado, Waldemar. Meu amigo Waldemar.

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