segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Nem um livro a menos

Nunca me esqueci daquele dia. Era novembro de 2013, e em Vigário Geral acontecia a semana de encerramento da Flup (Festa Literária das Periferias). De quarta a domingo, a favela esteve cheia de atividades literárias. Com distribuição de livros, peças de teatro, saraus, além das discussões teóricas na tenda principal.

Eu devia estar voltando de alguma atividade, pois cheguei com a palestra já iniciada. Uma pesquisadora traçava um panorama do mercado editorial brasileiro. Os números no telão abrangiam cerca de três décadas e eram implacáveis: entre os romances publicados, menos de 3% foram escritos por negros ou negras. Lembro de olhar em volta, me perceber cercado de pessoas negras de várias idades que, assim como eu, almejavam a carreira literária. Na hora tive certeza, só havia duas opções: ou estávamos todos nos iludindo naquele processo de formação ou o mercado editorial seria obrigado a mudar para nos receber.





Nos últimos sete anos, apesar de ainda estarmos bem distantes da justiça, muita coisa mudou. Surgiram muitas novas editoras, como a Malê, que é especializada em literatura produzida por pessoas negras e que a cada dia ganha mais espaço e público. Além disso, tivemos o fortalecimento de editoras como a Pallas e a Kapulana que já se dedicavam à literatura africana e toda a diáspora. E a mudança não parou por aí. Um número muito maior de pessoas negras passou a publicar em grandes editoras. Conceição Evaristo recebeu enfim seu merecido reconhecimento em nível nacional. A Flip teve por três anos consecutivos sua lista de mais vendidos encabeçada por pessoas negras.

Esse salto monumental está diretamente ligado a uma outra mudança: de público. Depois de décadas de luta dos movimentos negros, uma série de políticas públicas como a lei de cotas, o ensino da história afro-brasileira nas escolas, os pontos de cultura, entre outras, foram implantadas e possibilitaram essa mudança no público consumidor. A Flup é também um grande exemplo nesse sentido, mais do que “apenas” formar autores nas favelas, o projeto também sempre se preocupou em formar novos leitores.

Lembro de uma resenha que escrevi na “Folha de S. Paulo” sobre o “Efetivo variável”, segundo romance de Jessé Andarilho. Enquanto escrevia o texto, encarava como um trabalho normal. Só quando vi nossos nomes naquelas páginas de jornal, tive a dimensão do significado daquele momento. Pensei em nossos pais, crias de favelas como nós. Quais eram as chances do meu pai escrever uma resenha num jornal importante sobre um livro publicado pelo pai do Jessé na maior editora do país? Percebem o tamanho da mudança numa única geração?

Me faltam dedos nas mãos para contar os amigos próximos que tiveram suas vidas transformadas pela literatura, e que hoje são os próprios agentes da transformação. Seja por suas publicações, seja pelos projetos de leitura, bibliotecas comunitárias, sempre num exercício contínuo de abertura das perspectivas.

A proposta de uma taxa de 12% em cima dos livros com a desculpa de que se trata de um “produto da elite”, nada mais é que a resposta racista de quem sabe muito bem o impacto social provocado pelo empoderamento através da leitura, de quem morre de medo de ver o Brasil mudar.

Geovani Martins

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