sexta-feira, 7 de abril de 2023

A resistência à barbárie na Amazônia

Em janeiro de 2020, dois cidadãos americanos, Frank Giannuzzi e Steven Bellino, além de um brasileiro, Brubeyk Nascimento, apresentaram-se na alfândega do aeroporto de Manaus para registrar a documentação de carga a ser embarcada por eles, dias depois, com destino aos Estados Unidos.

Declararam que transportariam, em mãos, 35 quilos de ouro em barras avaliadas em R$ 10 milhões. A Receita liberou a carga, mas, ao voltarem para o embarque, as barras foram apreendidas e os três, detidos. Entre a declaração de transporte e o embarque, o funcionário da Receita acionou a Polícia Federal.

Nada batia. A história juntava dois agentes financeiros que atuavam em Wall Street e um brasileiro com endereço em Manaus, telefone com DDD de Goiânia e carga adquirida em São Paulo. Só o embarque por Manaus fazia sentido. Era por ali que se escoava o ouro adquirido no garimpo ilegal.


Naquela semana, a Superintendência da PF em Manaus havia recebido um equipamento importado da Alemanha capaz de fazer a análise instantânea da composição química de materiais. Se as barras se originassem da reciclagem de joias, o percentual de ouro não ultrapassaria 75%, mas o detector alemão cravou outro resultado: 98% de pureza.

Os policiais não tiveram dúvida de que tinham em mãos um produto do garimpo ilegal. Apesar da comoção internacional despertada pelo crime, aqueles contrabandistas eram a prova de que o ouro brasileiro continuava a fazer fortunas também no exterior.

A história está contada em “Selva - madeireiros, garimpeiros e corruptos na Amazônia sem lei” (Intrínseca, 2023), do delegado da PF Alexandre Saraiva. O autor ainda desafiou a justiça, que, além de mandar soltar os contrabandistas, liberou, por decisão do ministro do Superior Tribunal de Justiça Ney Bello, as barras de ouro.

Saraiva mandou uma equipe tirar as barras dos cofres da Caixa Econômica Federal, onde supôs que o gerente não resistiria a um oficial de justiça, e conseguiu que a Agência Nacional de Mineração ordenasse uma apreensão administrativa que não estaria ao alcance da decisão judicial. As barras estão no cofre da Superintendência da PF no Amazonas, mas a disputa por sua posse continua nos tribunais. “Literalmente iríamos entregar o ouro ao bandido”, lembra Saraiva.

A experiência deu ao delegado a certeza de que a investida anunciada pelo Banco Central sobre a comercialização do ouro não vai dar em nada. O BC foi intimado a prestar informações ao Supremo, em ação proposta pelo PV e relatada pelo ministro Gilmar Mendes, sobre a aquisição de ouro pelas distribuidoras de títulos e valores mobiliários.

Na resposta enviada ao STF, o BC diz que está em busca de tecnologia adequada para que as informações relativas à origem do ouro fornecidas às DTVMs não seja feita apenas com base na boa-fé dos declarantes. Saraiva demonstra que a tecnologia já existe.

Antes mesmo que a tecnologia da composição química estreasse em Manaus, há três anos, já era possível cruzar as autorizações da Agência Nacional de Mineração e as imagens de satélite do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Se houver autorização sem lavra é indício de “lavagem” de ouro ilegal. Sobram meios para conferir a documentação de origem por rastreamento científico.

Saraiva ainda ganhou proeminência, ao longo do governo Jair Bolsonaro, por ter liderado a maior apreensão de madeira ilegal do país, avaliada em R$ 130 milhões. Suficiente para carregar 7,5 mil caminhões, a apreensão resultaria na demissão de Ricardo Salles do Ministério do Meio Ambiente.

A operação é um dos capítulos mais ricos sobre o faroeste amazônico sob Bolsonaro. Nascido em São Gonçalo (RJ), em 1970, e tendo trabalhado os oito primeiros anos de sua carreira como policial federal no Rio, Saraiva viu o Estado chegar a um ponto hoje considerado de não retorno em relação ao crime organizado. Foi nesta rota que o governo Bolsonaro deixou a Amazônia, diz Saraiva.

O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, num território disputado por facções que se valem do garimpo ilegal nas terras indígenas para a compra de cocaína no outro lado da fronteira, é apenas a última das evidências de que o Brasil está a um passo de perder a Amazônia para o crime organizado.

A investigação conduzida por Saraiva demonstrou como Salles integrava um grupo que fornecia documentos fraudulentos à PF, dificultava a fiscalização ambiental e obstruía a investigação policial. Os relatórios da PF apontavam o uso da própria mãe, de quem Salles, hoje deputado federal pelo PL de São Paulo, é sócio, num escritório de advocacia, como “laranja” de atividades ilegais.

O relato dá conta, ainda, da mudança na postura do Comando Militar do Norte. Depois de auxiliar a PF na guarda das toras apreendidas, comunicou, repentinamente, que não poderia fazer a remoção da madeira.

Saraiva conduziu a operação sob o temor de que poderia ser afastado da Superintendência da PF no Amazonas a qualquer momento. Ciente de que poderia ser barrado pelo diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, comunicou-lhe a denúncia contra o ministro 20 minutos depois de dar entrada no sistema eletrônico do STF. No dia seguinte, foi exonerado.

A superintendência no Amazonas foi o terceiro último cargo na região ocupado por Saraiva ao longo de uma temporada de dez anos iniciada em Roraima e com uma passagem ainda pelo Maranhão. Ao longo do período na região, deu-se conta das limitações do trabalho da PF. Em Manaus apreendeu toras registradas em nomes de empresas que, anos antes, havia autuado em Roraima.

Foi lá que entendeu como a distribuição de títulos de terras faz com que na Amazônia as propriedades rurais tenham que ser “empilhadas” para caberem nos limites territoriais dos Estados. A burla no registro fundiário é o primeiro passo na cadeia de fraudes que resultava na emissão indiscriminada de Documentos de Origem Florestal (DOFs) pelo Ibama. Isso se ampliou num momento em que, das 27 superintendências estaduais do Ibama, 24 foram parar nas mãos de coronéis da PM e uma nas de um coronel do Exército.

De posse desse documento, os proprietários obtêm uma autorização de desmate alegadamente para agricultura, mas, de fato, apenas para a extração da madeira. A atuação na região e o doutorado na Universidade Federal do Amazonas deram a Saraiva a certeza de que a agropecuária é apenas uma fachada para a indústria ilegal de extração de madeira.

O delegado vê o Brasil a caminho de repetir o desastre do Sudeste Asiático, que derrubou suas florestas para abastecer primeiro o Japão, depois o resto do mundo de madeira barata. Foi o esgotamento das reservas naquela região que levou à elevação do preço da madeira brasileira. Por isso, defende a moratória da extração de madeiras nativas. E espera que, um dia, um piso de mogno seja tão reprovável quanto hoje o é usar um casaco de peles.

Essa indústria não vicejaria sem a vista grossa da comunidade internacional que cobra a proteção das florestas mas importa madeira sem se ocupar de sua origem. Vide a Biblioteca Nacional em Paris. Templo de uma cultura enraizada do ambientalismo, o prédio, obra de François Mitterrand, usou 60 mil m2 de ipê.

Não se trata de uma infração do passado. Saraiva esmiuçou a regulamentação europeia e concluiu que as regras de importação de madeira na União Europeia são muito mais lenientes do que aquelas de produtos agropecuários brasileiros que enfrentam concorrência local.

Do embate com Salles lhe sobrou uma sindicância interna pelas entrevistas concedidas. Saraiva é tão confiante em decisão do Supremo que lhe garante o direito de se manifestar que escreveu “Selva”. Além da sindicância, o embate lhe rendeu também um convite do PSB do Rio para que disputasse a Câmara dos Deputados. Rejeitou fundo eleitoral ou partidário. Gastou R$ 5 mil do próprio bolso - R$ 1,5 mil com advogado, R$ 1,5 mil com o contador e R$ 2 mil com adesivos. Teve 16 mil votos.

Concluiu não ter vocação para a política. Chegou a participar da transição, quando sugeriu uma operação urgente na reserva dos Yanomâmis, que só acabaria acontecendo por causa da denúncia do site Sumaúma, em 20 de janeiro, e operações em portos e aeroportos para barrar o embarque de madeira ilegal.

Na montagem do governo, porém, não foi convidado a voltar à Amazônia ou a cargo de confiança. Permanece em Volta Redonda. Não deixa de ser verdade que o delegado queira ficar perto de sua família, depois de 10 anos na Amazônia, como se alega na PF, mas o fato é que nenhum convite foi feito.

A ação destemida calou os críticos que exploravam sua proximidade com Alexandre Ramagem, delegado que foi chefiado por Saraiva em Roraima. Chefe da Abin sob Bolsonaro, foi ele quem levou o colega até o ex-presidente quando estava em pauta um nome para o Meio Ambiente.

Saraiva, superintendente da PF no Amazonas à época, foi até a casa de Bolsonaro na Barra da Tijuca. Não concordaram em nada. O delegado saiu de lá sem convite e o cargo acabaria sendo oferecido a Salles.

Muitos dos que Saraiva enfrentou na Amazônia hoje integram a base do governo - e o ministério. Quando foi exonerado, desmatavam-se 1,5 mil km2 por ano na Amazônia Legal. Em 2021, ano em que deixou a região, pulou para 2,3 mil. No ano seguinte chegou a 2,6 mil. Mais do que uma cidade de São Paulo abaixo por ano.

O compromisso eleitoral deste governo impõe uma reversão em 2023, mas há pressões em curso. O ipê, a exemplo do pau brasil e do mogno, integrava a lista de árvores ameaçadas até ser dela retirada por Bolsonaro. Ao fazê-lo, previu que as madeiras do gênero Handroantus, nas quais estão incluídos todos os ipês, voltassem ao index em julho. Portaria do atual governo prorrogou sua exclusão do index até novembro de 2024. Segundo o Ibama, para se ajustar à convenção internacional. Handroantus foi o nome da operação da PF que derrubou Ricardo Salles.

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