Me assento solitário
no mármore do poema
na cova rasa da história
e considero
os mortos de outrora
e a vergonha de estar vivo agora.
Olho os mortos em torno:
há qualquer coisa estranha e dura
no vazio de seus rostos:
– é vergonha,
é a calcinada amargura
segregada na solidão dos que choram
do fundo da sepultura.
Certamente não sabiam
que mesmo depois de mortos
uma vez mais morreriam
de vergonha e humilhação.
Vou dialogar com os mortos
e descubro
que os vivos é que estão surdos.
vou dialogar com os mortos
e escuto
que os vivos é que estão mudos.
– Podem os mortos em seus jazigos
emprestar sua voz aos vivos?
Será preciso um comício
de cinza, círios e ossos
para resgatar
os vivos mortos?
Mal formulo esse juízo, percebo
que me equivoco:
– são os mortos que me assomam à porta
sacudindo os ossos
brandindo vozes
desenterrando em mim
meus insepultos remorsos.
O que é isso? dança macabra?f
festa de bruxa: – abacadabra?
O que fazem na praça soltos
os mortos de nossa história?
O que fazem expostos, fora
da cova da memória?
Que dia torto, esquisito,
onde o morto é que está vivo
chorando na praça, às claras
a nossa escura desgraça…….
Diziam os sábios antigos
– os mortos governam os vivos.
Mas na ironia da frase
descubro um outro sentido
ao contemplar meu país
num desgoverno aflitivo.
Os que deviam reinar
estão sonâmbulos, perdidos
em seus palácios sombrios
em seus esquifes de vidro
olhando de longe a nação.
Não percebem que estão mortos
começam a já mal cheirar
e, no entanto, se recusam
a se deitar – no caixão.
Affonso Romano de Sant’Anna
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