Quando olho para trás, ainda meio tonto de cansaço, tento alinhar algumas ideias verdadeiramente sinistras, aquelas que levaram a esquerda brasileira a essa derrota histórica. Seduzir-se pelo chamado socialismo do século XXI é uma delas. Costumo compará-la aos pedaços do Muro de Berlim, não os verdadeiros que foram vendidos logo após a queda. Com as fortes vendas, os camelôs de Berlim tiveram que falsificar pedaços do muro para atender à demanda.
O socialismo do século XXI tornou-se atraente na América do Sul com a vitória do chavismo. A ideia era conquistar o governo pelo voto e, progressivamente, dominar as instituições autônomas: Congresso, Judiciário, Forças Armadas e, dentro das possibilidades, a imprensa. O modelo teve êxito na Venezuela, se podemos chamar de êxito um regime que empobreceu o país e cria enormes filas até para comprar papel higiênico. Lá foi possível dominar o Congresso, ganhar as principais disputas na Justiça e ter comandantes militares partidários do governo. A imprensa independente foi mantida sob intenso ataque.
No Brasil, essas expectativas começaram a falhar no mensalão. Para dominar o Congresso, era preciso injetar muito dinheiro nos partidos aliados. O escândalo acabou sendo descoberto, e um juiz indicado pelo governo do PT, Joaquim Barbosa, conduziu o inquérito com admirável lisura. Os militares brasileiros mantiveram-se distantes do choque partidário. A imprensa, cortejada pelo PT nos seus tempos de oposição, foi demonizada. Não porque tenha, através da investigação, descoberto os grandes lances da corrupção. Ela noticiou o resultado do trabalho de duas instituições também autônomas: Polícia Federal e Ministério Público, em sintonia com o juiz Sérgio Moro.
Uma outra ideia sinistra que sobreviveu na esquerda brasileira foi que os fins justificam os meios. No fundo, isso significa dizer: estou fazendo o bem, danem-se as regras democráticas. Para avançar nesse terreno contaminado, tornou-se necessário desenvolver uma nova língua e prosseguir com a tática já esboçada na campanha: culpabilizar os seus críticos.
Se na campanha eram chamados de preconceituosos os que tinham reservas sobre as ideias e atitudes de Lula, no governo tornaram-se, principalmente, reacionários a serviço das elites. Ao optar sempre pelo contra-ataque, o PT não percebia que a crise se aprofundava e o partido se afastava cada vez mais da única possibilidade de superá-la: um esforço de união nacional. O PMDB, como sócio menor, fez muitas coisas erradas em parceria com o PT. Nunca embarcou, entretanto, no discurso nós contra eles, nem se refugiou numa suposta superioridade moral em relação aos seus críticos. A chance, ainda que precária, de realizar um tipo de união nacional, ideia sedutora em crises profundas, acabou levando as águas para os moinhos do PMDB. Era uma questão de tempo.
A troca não significa substituir um esquema corrupto por algo puro e imaculado. Mas é sempre possível denunciar as falcatruas das raposas do PMDB sem que te acusem de estar a serviço das elites e afirmem sua superioridade moral como portadora de um projeto único de salvação.
Nesse sentido, o choque com o PMDB abre uma chance de recuperar um diálogo político, sem, necessariamente, se defender de estar a serviço das elites, colonizadores de olhos azuis, brancos, machos e heterossexuais. Esse processo de critica à esquerda para mim já está se encerrando, pois acredito que ela própria terá de refletir sobre os caminhos que a levaram a esse fracasso. O mais importante é olhar para a frente, inventariar o rombo deixado nas contas nacionais e a amplitude do processo de corrupção.
Não é preciso parar a reconstrução. Mas, se não tivermos todos os dados sobre nossa desgraça econômica, será difícil traçar um caminho realista para superá-la. Quanto ao processo de corrupção, nunca é demais esquecer que os governos Collor e Dilma caíram sob acusações semelhantes. E olha que tanto Collor como o PT, nos palanques das diretas, eram as estrelas do futuro. Caçador de marajás, Collor prometia combater a corrupção, e Lula defendia a ética na política. Hoje, ambos são acusados no escândalo do Petrolão. Nossa jovem democracia falhou nesse quesito.
Em vez de acreditar em salvadores, será preciso conhecer e discutir as condições básicas que levam os governos brasileiros à ruína moral, independentemente de suas propostas moralizadoras. Redentores caíram no mesmo buraco. São responsáveis por seus erros, mas também é preciso desmontar as armadilhas do caminho.
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