terça-feira, 28 de agosto de 2018

Um índio em Copacabana

Acreditar em milagre - “creio porque é absurdo”, dizia Tertuliano; cremos - reitera o bom senso - porque a vida sem encantamento não é suficiente.

O milagre é o que acontece a despeito dos limites impostos pela realidade. Houve um tempo em que viajar de avião era um perigo; em outro, supúnhamos que os políticos roubavam, mas não com tanta obstinação.

Na minha longa vida, vivi alguns milagres. Um deles foi ver o Brasil ganhar cinco Copas do Mundo. Outro foi ter sobrevivido à minha audácia antropológica de “viver com índios”. Neguei o futuro previsível àquela época: virar advogado, arquiteto, engenheiro, militar ou médico, para tentar “ser antropólogo”. Uma profissão na qual não se vira porque nela há um encontro conflituoso e transformador - investigar outras gentes produz uma singular experimentação de si mesmo. Insidiosamente, os costumes e as crenças do povo em que se foi um intruso disposto a deslumbrar-se com o seu cotidiano mais banal, acaba perturbando a crença na humanidade onde se nasceu.

Tal como na arte não há como “virar antropólogo”. Há somente como se dispor a experimentar a marginalidade de quem denegou suas crenças para tentar compreender a dos seus anfitriões, cujo estilo de vida é visto como selvagem. Vida de “índios”, como falamos com profunda ignorância e preconceito.

Talvez esse tenha sido um dos meus milagres quando, com Júlio Melatti, passei quatro meses com os índios gaviões no Rio Praia Alta, sul do Pará, em 1961.

Ali ocorreu uma experiência inusitada: éramos dois antropólogos para meia dúzia de nativos cuja cultura os interesses locais haviam dissolvido. Aquela humanidade que hoje, felizmente, conta com cerca de 500 almas, teve a força de superar uma cruel depopulação ao lado da agressão dos “castanheiros”. Sua chamada “integração” ao Estado nacional brasileiro foi violenta.

Relendo os meus diários, a limpidez da velhice me deixa ver, com Joseph Conrad na minha cabeça e Darcy Ribeiro ao meu lado, o coração das trevas. O momento em que uma humanidade se percebe às voltas com sua extinção. O milagre foi testemunhar a sobrevivência dessa sociedade, que eu mesmo condenei à extinção no livro Índios e Castanheiros (escrito com Roque Laraia, em 1967), como uma orgulhosa tribo depois de ter convivido tanto tempo com a morte.

Foi ali que, caçando, imaginei estar perdido.


Em 1962, Kaututere, um índio falante, determinado e curioso que, por isso mesmo, recebeu em Itupiranga o pejorativo apelido de “Doidão”, veio ao Rio, hospedou-se no Leme e o guiei parcialmente. Vale lembrar que na caçada que fizemos, ele me assombrou por sua desenvoltura em localizar os porcos, livrá-los de suas entranhas e levá-los para a aldeia.

Na época, meus pais moravam em Copacabana onde encontrei Kaututere desalinhado nas roupas que vestia e incomodado pelos sapatos que lhe apertavam os pés. Levei-o para ver a praia e as lojas em que ele teve o desconforto de ser visto - tal como fui em sua aldeia - como curiosidade.

Visivelmente inseguro, meu hospedeiro voluntarioso experimentava o reverso do que eu havia vivido entre sua gente. Agora era ele o intruso dependente de um guia. Na mata, eu era uma criança. Agora, andávamos de mãos dadas em Copacabana. Era ele o amedrontado que se surpreendia com a quantidade de “kupen”. De estrangeiros - cujo número ultrapassava sua imaginação. Só relaxou quando, no apartamento, conheceu meus pais, irmãos e tia o que, certamente me humanizava, ao mesmo tempo em que o remetia de volta à humanidade que era a sua, na qual todos se conheciam.

Por ignorância, não repeti a experiência de Franz Boas com um nativo kwakiutl, que o visitara em Nova York. Não Kaututere, o etnólogo gavião, para nenhum lugar especial. Ele foi apenas um índio em Copacabana. Mas fizemos um profundo experimento antropológico: vimos um ao outro de modo reverso por meio do milagre da reciprocidade - esse perfume do humano.

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