A eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, expôs de forma clara os parâmetros sob os quais o confronto político é travado há décadas. O establishment (partidos, empresariado, mídia) sempre vai optar pelo candidato menos disruptivo, mais previsível. Trump rasgou o roteiro, porque disputou a batalha cultural, que é a que importa há algumas décadas. O presidente dos EUA não se submete ao script padrão, não se constrange quando é chamado de racista ou machista, palavras que viraram cavalos de batalha, e retruca insultos com desqualificações e deboches.
Bolsonaro é completamente diferente de Trump, mas segue regras parecidas. Fala o que pensa — ou, melhor ainda, o que não pensa. Isso cativa a porção do Brasil que não aderiu à política identitária, essa que privilegia o debate sobre minorias. Quanto mais a imprensa e os adversários políticos baterem nessa tecla, mais prestígio Bolsonaro ganhará entre os grupos que não se veem representados em discursos sobre transexuais e negros — que não raro interditam todo o debate franco em relação a qualquer que seja o assunto em discussão.
O pré-candidato do PSL é acusado de incitar o estupro ao mesmo tempo em que defende a castração química de estupradores. Faz sentido? Bolsonaro é destemperado — o que não é exatamente uma qualidade para um presidente da República — e ainda paga por ter respondido de forma ofensiva à ofensa de uma adversária política anos atrás. Teria revelado seu machismo espontaneamente? Nem todo mundo vê assim. A esquerda brasileira pretende fazer de Bolsonaro um símbolo do mal por conta de posicionamentos rotulados como “polêmicos”. E o deputado acabou se transformando em um símbolo do bem para quem não gosta da esquerda brasileira.
Talvez por isso o fato de a família Bolsonaro ter uma dezena de imóveis e, ainda assim, seu patriarca gozar de auxílio-moradia, não interfira em sua popularidade. Não é exatamente a um sistema político que Bolsonaro se opõe. É a um sistema cultural. E, ao fazê-lo, ele recebe carta branca da parcela do país que joga esse mesmo jogo. A vulgaridade da frase “uso para comer gente” é percebida por todos, mas relevada por quem está interessado em avançar alguns passos no campo de batalha cultural que se trava no Brasil desde a ditadura militar — mais em A corrupção da inteligência (Record, 2017), de Flávio Gordon.
Um ano depois da chegada de Trump à Casa Branca, os Estados Unidos não acabaram, apesar de a imprensa norte-americana anunciar a derrocada inevitável do império diariamente. Pode ser que a potência só sinta os alegados efeitos maléficos da gestão Trump daqui a anos, mas, nesse caso, os jornais locais, reverberados mundialmente, deveriam estar dizendo isso. Quanto mais histérica e longe da realidade soa a mídia norte-americana, menos os leitores acreditarão nela. O mesmo se aplica a Bolsonaro.
Quanto mais o deputado for tratado como pária, homofóbico, xenófobo, fascista, machista e misógino, mais prestígio ele ganhará entre aqueles que não enxergam nessas desqualificações mais do que armas da batalha político-cultural. Por enquanto, esses estigmas continuam funcionando para a parte mais proeminente da população, os intelectuais que definem agendas políticas e fazem a cabeça da elite universitária, mas esses termos vão se desgastando pelo uso. Não serviram para impedir a ascensão de Trump ou a saída do Reino Unido da União Europeia.
O que fazer, então, para impedir a eleição de Bolsonaro? Seguindo o raciocínio, a melhor alternativa seria tratá-lo como mais um — ou simplesmente ignorá-lo. Mas isso parece ter se tornado impossível. A armadilha está montada. A política identitária precisa ser alimentada periodicamente, e Bolsonaro é um dos melhores espantalhos de tudo aquilo que os adeptos dessa perspectiva de mundo dizem combater. Para impedir a derrota na batalha cultural, a esquerda nacional pode acabar entregando uma vitória política nas mãos do seu maior inimigo declarado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário