sábado, 5 de maio de 2018

O caso do morto vivo

Em “Grande Sertão: Veredas”, Guimarães Rosa ensina: “O que assenta justo é cada um fugir do que bem não se pertence. Parar o bom longe do ruim, o frio longe do quente, o rico longe do pobre, o vivo longe do morto”. Peço que Rosa me ajude nessa crônica. E vou logo explicando a razão de começar assim. É que tudo, no caso agora relatado, lembra esse “vivo longe do morto”.

O advogado português Álvaro Dias, 56 anos, foi condenado por falsificar sentenças. Em 18/11/2016. Tendo ainda, nas costas, numerosos processos. Tantos que temia passar todos os seus anos restantes na prisão. Para piorar, depois daquela condenação e antes de ser preso, aconteceu-lhe algo muito desagradável. Ele morreu. Na luxuosa quinta que tinha em Benavente (Santarém), a Herdade da Mata do Duque. No dia de Natal! Esmagado por seu Rolls-Royce Silver Shadow III. O jornal regional O Mirante, reconstituindo o acidente, descreve que o carro “começou a descer em marcha-atrás”. Porque o “travão de mão não fora acionado”. Ao perceber que iria se chocar com as árvores, o condutor “tentou voltar a entrar no veículo para o travar, mas embateu numa árvore, depois de ter conseguido abrir a porta e acabou por ser atropelado”.

O velório reuniu poucos amigos na Capela Mortuária da Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes E tudo parecia nos conformes. Os laudos médicos indicaram que as impressões digitais eram do advogado. As lesões seriam compatíveis com o tipo de acidente. O rosto, no caixão, foi “tapado por haver sangramento”; mas as fotos, antes, revelavam semelhança física. O cadáver logo foi cremado. E, para sorte dele (e da família), todos os processos em que era réu acabaram encerrados.

Ocorre que “um enterro é a procissão algébrica das dúvidas” (Rosa, Os Chapéus Transentes). Dando-se que, pouco depois, uma denúncia anônima chegou ao juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (Lisboa). A de que Álvaro Dias havia contratado um cadáver substituto.

Nas investigações sobre a denúncia dessa morte que não houve foram encontrados, nas gavetas de seu escritório, “documentos falsos, em número de dezenas”. E muitos indícios suspeitosos: a “agência funerária sita em localidade muito distante dos locais de residência da vítima”; “ligação entre o médico-legista, outrora aluno do advogado e a vítima”; e a “invulgar celeridade na autópsia e na cremação”. As aspas são da Visão portuguesa. Novos exames apontaram 23 outras falhas na comprovação dessa morte. E nosso Álvaro Dias corre o risco de ter tido tanto trabalho pra nada. “Quem fala muito, dá bom dia a cavalo” (Rosa, Minha Gente). Que a polícia está indo à sua procura.

Mas afinal, dirão apressados leitores, que isso tem a ver com nosso Brasil? Duas coisas, meus senhores. Uma, o juiz do feito é o senhor doutor Carlos Alexandre. O Sérgio Moro de Portugal. Responsável por julgar, na Operação Marquês, o ex-primeiro ministro José Sócrates. Num processo do PT de Portugal que envolve Lula, José Dirceu e a Odebrecht. Todos muito conhecidos nossos. Em despacho, ele declarou que “a comprovar-se a veracidade das suspeitas, isso transporta as instituições portuguesas para o nível do absurdo”. Os olhos são, mesmo, “a porta do engano” (Rosa, O Espelho).

A outra razão é o lugar para onde teria fugido, e hoje viveria bem, o tal Álvaro Dias. Quem apostou no Brasil, ganhou fácil. Tanto lugar no mundo e tinha que vir logo para cá. Pobres de nós. Pensando bem, pobre dele. Na ilusão de que, por aqui, ainda se pode ter grandes fazendas, sítios, apartamentos e dinheiro em malas, com a esperança de não ir parar nunca na cadeia. Quando, considerando os últimos acontecimentos, não dá para ter tanta certeza assim.

José Paulo Cavalcanti Filho

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