sábado, 5 de maio de 2018

Dimensão simbólica da terra

Valdsom Braga 
Durante uma pesquisa no Alto São Francisco, um lavrador octogenário discorria sobre seus problemas para produzir, contando que não aceitara o convite dos filhos para morar na cidade. Alegou: “Aqui eu planto e colho tudo que preciso; lá na rua, eu vou comer de sacola”.

Transpareceu, naquele momento, a dimensão simbólica da terra para quem vive e trabalha nela. Isso ultrapassa a esfera econômica, constituindo razão para resistir aos apelos do mundo urbano ou à sedução de empréstimos bancários, porque se exige a propriedade como garantia.

O agricultor tradicional manifesta, permanentemente, orgulho por seu terreno, que é a principal referência de sua vida. Há relação afetiva, porque ela proporciona alimentação farta e moradia permanente. Assim, não é apenas instrumento de produção. Ter a propriedade de uma área suficiente para a agricultura de subsistência representa a diferença entre ser cidadão e ser miserável, porque ela confere segurança, dignidade e autonomia. O dono nunca será um zé-ninguém, sempre escorraçado em espaços alheios.

Aquele senhor não iria integrar-se ao mercado, porque o ambiente urbano faz muitas exigências, incluindo qualificação profissional e uso constante da moeda. Preferiu, então, permanecer em sua fazendinha, que seria sempre uma barreira material e simbólica entre ele e a miséria.

Desde meados do século XX, houve intenso fluxo migratório para a cidade, em busca de escola, assistência médica, previdência e trabalho menos penoso. No entanto, a maioria não estava preparada para o espaço urbano, fixando-se em favelas e submetendo-se ao subemprego e à marginalização social.

Os lavradores que resistiram em seu torrão sabiam que não seriam automaticamente integrados ao contexto moderno e perderiam suas sólidas referências como gente do campo. Queriam continuar livres, sem aproximação de quem poderia humilhá-los. Rejeitavam também financiamento bancário, porque se lembravam de amigos que perderam sua terra e se tornaram boias-frias espoliados por “gatos” e pelo agronegócio, enquanto puderam trabalhar. Viraram, depois, mendigos em cidades grandes.

A diferença entre o agricultor tradicional e o empresário rural está não na dimensão da propriedade, mas em seus vínculos com ela. Quem tem, entre outros negócios, uma fazenda não cria afeição por ela, que é apenas um instrumento de produção para propiciar lucro. Enquanto isso, os que vivem em contato direto com a terra desenvolvem atitude diferente, porque perdê-la não é apenas um prejuízo. Trata-se da destruição de seu modo de vida com o rompimento da barreira que os protege da miséria.

Atualmente, os pequenos proprietários rurais têm sofrido ataques violentos de bandidos. Estão também expostos a diversas formas de manipulação política. Alguns agentes podem ensejar imenso potencial de conflito, abrindo caminho para a interferência de grupos extremistas nos dois polos, sem considerar seu futuro, sua dignidade e seu bem-estar.

Gilda de Castro

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