A polarização política que inquieta especialistas por sua persistência não é o mesmo fenômeno da polarização social. Faz diferença a dimensão afetiva, em que episódios de vida são mais reveladores do que conceitos. Assim, um indivíduo convicto do momento de "pacificação" decide aproximar-se do vizinho percebido como pacato, respeitoso, mas de quem se diz votar no lado violento. Na afabilidade da piscina condominial, aborda-o com tato, a resposta é tranquila: "Sim, sou bolsonarista, mas do bem". Acrescenta: "Isso existe".
O fato é real, recente, ao pé-da-letra. Vale cotejá-lo com um outro, relativo ao zap-grupo, também declaradamente bolsonarista, de uma mesma profissão pública. Um deles posta uma mensagem segundo a qual importante figura da República teria sido flagrada com cocaína. Ninguém acredita, porém. Não é verossímil para o perfil em questão. Depois de alguma ponderação, o autor admite ser fofoca. Arremata: "Mas daria uma excelente fake news".
Os episódios estão ligados por um grau peculiar de complexidade. O primeiro, benigno pela singeleza da confirmação, é ao mesmo tempo contundente pela admissão lógica de que trafega numa esfera oposta ao bem, mas com excepcional isenção própria. O segundo parte de autodeclarados liberais econômicos, respeitáveis em público, porém com inequívoca malignidade em seu caldeirão privado de veneno emocional: um bunker de linchadores virtuais.
É provável que o wokismo, transformado em terrorismo intelectual do politicamente correto, gere um ressentimento exasperado em frações de classe de leitura escassa, passageiras de ego-trips. Confundindo com política o avanço de um novo tipo de controle social por normatizações moralizadoras, abrem-se à fascistização das redes. Haverá quem possa se expressar em termos racionais. Mas o gozo vertiginoso da fake news consiste em surfar na onda irrefletida da ignorância e do falseamento.
Apesar do voto implícito, não é mesmo de política que se trata. Eleitoralismo é hoje a fibrose do corpo social, problema de saúde cívica. Não faz sentido ser bolsonarista, é como dizer "eu sou o que já era". Ou seja, jornal de ontem, agarrado a nome como a um balão murcho, resto de uma festa (da Selma?) que deu chabu. Senão, identidade de bolha, fixada num polo sem geografia humana. Daí uma comoção primitiva, pré-política, aparentemente inconsequente.
Mas cada indivíduo é um mínimo múltiplo comum: um é multi. O vizinho talvez acredite pertencer a outra espécie humana, aspirante a algo ausente no horizonte social. Afinal, o próprio governo acaba de anunciar um plano de industrialização com metas "aspiracionais", sabe-se lá o que seja isso. Já o zap-grupo, entubado na máquina da mentira, o que demanda mesmo é oxigenação cívico-cultural.
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