A crise não é conjuntural, ela abraça ao sistema por múltiplos fatores estruturais e se manifesta por um processo de cumplicidades entre partidos e agentes que, incapazes de resolve-la, batalham pela conciliação. Mas, à doença crônica é possível que não haja remédio, no curto prazo. O corpo médico à disposição é limitado, o diagnóstico e a terapia prescritos são inúteis. Sobre o doente, se pratica medicina paliativa como se fosse terminal; na verdade, ministra-se um tratamento negligente.
As desconfianças vão em várias frentes; são cinco as crises dentro da crise: 1) a crise de modelo econômico, 2) a crise do ''país da meia-entrada'', 3) a crise do presidencialismo de coalizão, 4) a crise do financiamento da política, 5) a crise de liderança. Necessário enfiar o dedo em cada uma dessas chagas.
Na década de 1990, ao dominar a inflação, o país deu um estupendo salto econômico. Estabeleceu a racionalidade dos ''fundamentos macroeconômicos''; isto deu alguma segurança para distribuir renda e promover investimentos. Foi o período do governo FHC e boa parte do governo Lula, este favorecido pelo choque de commodities. Percebeu-se, todavia, que não bastava: seria necessário avançar na agenda de produtividade; investir em infraestrutura, logística, educação e aperfeiçoamento do ambiente de negócios.
A Nova Matriz Econômica de Dilma deu com os burros n'agua ao imaginar que tudo pudesse ser feito unicamente pelas mãos do Estado e à parte de transformações das instituições políticas; não investiu em reformas e, pior, abusou-se até o esgotamento de mecanismos como o crédito e incentivos fiscais de toda ordem.
Hoje, de volta à agenda de 1990 — controlar os fundamentos macroeconômicos —, o país retrocedeu ao que deveria ser obrigação. Precisa, no entanto, da política para avançar numa agenda de reformas que possa ir além do simples ajuste fiscal. Essa agenda, é claro, fere interesses de toda a ordem e por isso requer a solução de outras crises.
O ''país da meia-entrada'' é a expressão que o economista Marcos Lisboa encontrou para descrever um sistema de enorme poder e privilégios corporativos. Desde, pelo menos 1936, se sabe — com Sérgio Buarque de Holanda — da presença e da força dos ''interesses particularistas''. Corporações que levam o maior valor da renda nacional, praticamente arrendando para si o Estado.
São diversos grupos que ficam com ''a parte do leão''; sejam eles empresários, sindicatos de empregados públicos, privados e patronais e até grupos específicos como juízes, promotores, fiscais, parlamentares, médicos, professores, estudantes… Todos os que conseguem arrancar uma lasquinha dos recursos públicos, com supostos direitos que inexistem — por que a escassez é a lei da natureza — para grupos sociais que vivem sem qualquer proteção.
Esse ''país da meia-entrada'' entrou em crise, sobretudo, por conta das transformações demográficas — mas também pelas próprias limitações de crescimento e expansão do modelo econômico. Resolver seu colapso demandaria ação de um sistema político eficaz, com visão de Estado e de longo prazo, pouco ou quase nada voltada para interesses particulares e fisiológicos. Eis outro ponto de crise.
Durante anos, teceu-se loas ao presidencialismo de coalizão — de fato, o sistema entregava aquilo que o Executivo pedia. Descobriu-se que, com os recursos de que dispunha, o governo fazia maioria no Congresso e aprovava demandas. Eureca! Admitia-se o fisiologismo como elemento estrutural do processo. Com efeito, alguma gordura, às vezes, e necessária para que o mecanismo flua. Com alternância de poder, o sistema tem seus momentos de ''reloading'' e se renova. Novos governos surgem, refazem acordos, redistribuem recursos e o pacto fisiológico renasce.
No entanto, não se considerou a qualidade da democracia que se fazia. Recursos públicos têm limites; voracidade fisiológica, não. O vício se expande e controla o organismo; sem negociação programática e limites morais, cargos e recursos transmutam-se em ''esquemas''; tudo passa a ser negociado no paralelo. Em quatro mandatos, a gordura fisiológica compromete as artérias do sistema; a graxa emperra o mecanismo. Vive-se o colapso da coalizão fisiológica.
Esquemas assim vorazes e sem freios comprometem a dinâmica de outro fator estrutural: a relação das empresas com a política por meio da corrupção — de algumas empresas, não todas. Acordos, engodos, fraudes, a corrupção sistêmica que financiava esse tipo de política e de políticos, todavia, agora diante de uma sociedade diferente.
A Constituição de 1988, de fato, gerou novas instituições. Em que pese excessos, o Ministério Público formado por jovens promotores, com o sangue nos olhos, surgiu como fato novo. Ao mesmo tempo, o judiciário que se remoçou e assumiu doutrinas distintas do tipo de direito que aqui se pratica; a Polícia Federal também conquistou autonomia. Trata-se do ''republicanismo'', que hoje o PT enxerga com desdém e origem de sua desgraça; ironicamente, sua maior contribuição.
Some-se a isto um sistema internacional assustado com o terror e mais vigilante com a corrupção e com lavagem de recursos; uma sociedade multimídia, fragmentada e, ao mesmo tempo, conectada em redes, tão plena de conflitos e disputas, indócil, que já não mais se pode cooptar. E está posta a bactéria que revela a sepse, a infecção generalizada do organismo, prenúncio da morte do sistema.
Tudo isto requer medidas profundas e urgentes. Todavia, a liderança política é o quinto elemento em colapso. Com diagnóstico correto, coragem e mediedade, habilidade política — o que inclui comunicação com a sociedade —, o corpo político poderia promover a reinvenção e seu próprio resgate; reorganizando o sistema, superando as diversas crises. Mas, é esta a principal crise do país, seu momentâneo deserto de lideranças.
Nem sempre foi assim, mas vive-se esta ausência de lideranças (no plural). Não se trata de apenas um líder solitário e messiânico, pleno de fúria e farisaísmo que, quando surgiu, foi sintoma e não solução. Mas, de grupos capazes compreender as crises, de representar e liderar setores, conduzir processos de reformulação. Não à toa, tudo tem ido parar no Supremo Tribunal Federal, que também vive sua crise de quadros e lideranças.
A entressafra é ruim, talvez uma geração perdida; um hiato a ser preenchido.
Dizem os chineses que as próprias crises geram inovação, lideranças, soluções. A história coloca problemas aos quais a própria história traz consertos e concertações. Plácidos, os chineses a tudo enxergam com perspectiva de décadas, séculos, milênios; doenças se curam com terapias longas. O diabo é que não somos chineses; não há tanto tempo nem paciência assim. Os males são males que consomem rapidamente.
Carlos Melo
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