A CPI da Covid mal completou um mês, e a responsabilidade do governo federal, por atos, omissões, inépcia ou incompetência, na política de vacinação está clara. Ontem, o depoimento de Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, foi outro que jogou luz sobre a ação deliberada do presidente da República para desqualificar, desacreditar e adiar a assinatura do contrato de compra da CoronaVac, parceria com o laboratório chinês Sinovac. O sim à primeira oferta, feita em julho, garantiria ao país 60 milhões de doses ainda no último trimestre de 2020. Mas o contrato de 46 milhões de doses só foi formalizado em janeiro deste ano, sob intensa pressão política e quando a variante P.1, mais transmissível, já circulava em Manaus e, na sequência, país afora.
Antes disso, os brasileiros já ouvíramos do presidente da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, que a farmacêutica entregaria 1,5 milhão de doses ainda em 2020. A proposta apresentada em fim de agosto previa também o envio de mais três milhões de doses no primeiro trimestre deste ano. Foram cinco ofertas recusadas ou ignoradas até fevereiro de 2021, quando houve a contratação de cem milhões de doses. O primeiro lote da vacina Pfizer, com um milhão de doses, só desembarcou no Brasil em fins de abril. E até junho, segundo informação do Ministério da Saúde, está prevista a entrega de mais 14 milhões de doses.
No depoimento à CPI, o ex-ministro Eduardo Pazuello informou que partiu da Casa Civil, chefiada à época pelo general Braga Netto, hoje titular do Ministério da Defesa, a decisão de aderir à Iniciativa Covax Facility pela cota mínima de 42 milhões de doses, suficientes para imunizar 10% da população brasileira. A Organização Mundial da Saúde permitia reserva equivalente à metade dos habitantes — 210 milhões de doses, portanto.
A vacinação no Brasil caminha lentamente, porque o governo quis assim. O presidente e seus cúmplices apostaram em tratamento precoce ineficaz, na farsa da imunidade de rebanho por contaminação, no boicote ao isolamento social, em detrimento da vacinação. Vice-presidente da CPI, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) diz que a linha de investigação sobre vacinas foi esclarecida no primeiro mês da comissão. “Houve omissão criminosa que levou os brasileiros à morte”, resume. O país chega ao fim de maio com apenas 10% da população completamente imunizada, com duas doses de vacina aplicadas. Em março e abril, a população atravessou o bimestre mais letal da pandemia iniciada um ano antes. Quase 460 mil brasileiros já perderam a vida para a Covid-19. É certo que milhares estariam vivos, se houvesse vacinação em escala desde a virada do ano.
“Não consigo pensar em nada que não passe pela ideia de necropolítica. Se tivéssemos mais vacinas, não enfrentaríamos novas cepas, não perderíamos tanta gente”, desabafa Alexandre Silva, doutor em Saúde Pública e membro do grupo de trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Ele aponta quatro erros graves no enfrentamento à pandemia via imunização: desconhecimento do tamanho da população nos diferentes municípios, atraso sistemático na distribuição de doses, falta de alinhamento entre União, estados e municípios. Por último, a fragilidade dos pactos para determinar os grupos prioritários, que acabaram adicionados ao Plano Nacional de Imunização por pressão política, judicialização ou voluntarismo de governadores e prefeitos.
A escassez de vacinas e o vaivém de critérios — ora profissionais de saúde da linha de frente e idosos, ora todos os trabalhadores da saúde, da educação, da segurança pública, ora quilombolas, ora gestantes — jogaram na várzea um debate técnico. “Tínhamos de priorizar quem mais precisa. Isso passa por idade, algumas ocupações, mas também por CEP. A vulnerabilidade de quem mora em periferias e favelas, de quem se espreme no transporte público é conhecida”, argumenta Silva.
Não foi assim. A fila tornou-se incompreensível. Assim, jovens estudantes de uma anabolizada área de saúde são vacinados antes de brasileiros adultos em plena atividade. Por isso, pipocam denúncias de médicos distribuindo atestados de comorbidade para pessoas saudáveis se vacinarem, enquanto seis em dez idosos que tomaram a primeira dose não apareceram para a segunda. Não há campanha para estimular a vacinação, e, ainda ontem na CPI, parlamentares governistas seguiam lançando desconfiança contra a CoronaVac e repetindo informações falsas sobre administração de cloroquina contra a Covid-19.
No Programa Nacional de Imunização que conhecíamos, brasileiros não precisavam competir nem violar princípios éticos por vacina. Os fura-filas do lobby e da fraude também estão na conta do desgoverno.
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