quarta-feira, 6 de novembro de 2019

A mentalidade bolsonarista

Para que reste logo assentada a constituição deste escriba, aquilo que dá regência a este texto: não acredito em liberalismo econômico sem liberalismo político. Não numa democracia. Para que fique ainda mais claro, com aplicação prática: não acredito na vitalidade – na viabilidade – de um projeto de reformas liberais do Estado que não tenha os princípios da democracia liberal como um valor inegociável.

Tampouco creio ser possível, no mundo real, atrair investimentos – investimentos, não especulações – para um solo obviamente instável, inseguro; chão cujo desequilíbrio é forjado artificialmente por uma fábrica de crises institucionais que tem centro no próprio presidente da República.

Quem botará dinheiro – para valer, para ficar – nisso aqui?

A rigor, objetivamente, desconfio do interesse de o bolsonarismo, fenômeno autocrático, investir num programa liberal na economia – algo estrutural, com corpo de longo prazo – para além da geração das condições básicas mínimas para um voo de galinha capaz de assegurar a reeleição de Jair Bolsonaro em 2022. Não será preciso muito... Dado o fosso em que nos afundamos, uma breve reação na curva da geração de empregos faria boa parte do serviço.


Argumento nenhum desmonta a minha suspeita – com alicerce histórico – de que a intenção bolsonarista, nem um pouco original, seja usar o liberal econômico para conquistar alguma descompressão fiscal, algum fôlego para gastar, para fazer obras; e depois: tchau. Não seria novidade. É o que os mais espertos entre os populistas fazem.

Muito mais grave do que a recessão econômica é a depressão política que nos ata, pelo menos, desde 2013. É difícil supor que a primeira possa ser superada – com consistência, com fundamentos – sem que resolvamos a segunda. Eu diria: é impossível. Pergunte-se, portanto: será este governo – que opera em guerra constante, que planta conflitos como alimento, que está em campanha permanente, que radicaliza, que avança no racha do “nós contra eles”, que é a própria antipolítica – apetrechado para vencer uma doença política sem precedentes em tempo democrático (e da qual talvez seja a mais alta febre)? Ou seria vocacionado para ardê-la ainda mais?

Como não citar, a propósito, a fábula bolsonarista recente do leão e as hienas? O leão! O presidente leão. O rei da selva. Rei da selva – e (ao mesmo tempo, num arranjo improvável) vítima. Ele, o dono do pedaço, impedido de imperar plenamente por uma concertação golpista de hienas – as próprias instituições da República, os instrumentos de mediação e fiscalização; incluída a imprensa. O maldito establishment que não deixa o homem reinar acima dos marcos republicanos e da democracia representativa.

Para que não haja dúvida: o cenário – divulgado por Jair Bolsonaro em vídeo – expressa real inconformismo ante a teia impessoal que regula o ímpeto do governante por se espalhar. Para que não haja dúvida: as hienas são a institucionalidade – os freios e contrapesos que limitam o abuso de poder.

Não tem como dar certo.

Na já célebre entrevista à jornalista Leda Nagle, aquela em que falou em recurso a algo como um "novo AI-5", Eduardo Bolsonaro declarou também que o que faz um país forte não é um Estado forte; mas indivíduos fortes. Belo, né? Concordo. Há, porém, uma armadilha totalitária na formulação. Vejamos. Quem fala em novo AI-5 fala numa medida de exceção que, obrigatoriamente, suprime – cassa – garantias individuais. Certo? Quem fala em novo AI-5 fala, pois, em Estado forte; obrigatoriamente. Fala, por óbvio, em Estado forte na mão – obrigatoriamente – de indivíduos fortes; porque alguém precisará operar a máquina forte. Certo?

Daí por que se pergunte: quais são os indivíduos fortes de Eduardo Bolsonaro, os que controlariam o Estado? Os leões da família. Governantes fortes.

Isso tem passado; e não é bonito.

Podem me chamar de pessimista. Prefiro o lugar do prudente; do cético. Não importa. Tenham-me na conta do pessimista. Há, contudo, inegável lastro histórico na análise que proponho. Não existe liberalismo econômico sem liberalismo político. Não na democracia. É a história que ensina. O primeiro, sem o segundo, é o paraíso para o autocrata. Não acredito em liberalismo econômico em terra de leão. Mas acredito em liberalismo econômico na boca do leão; sendo sabido – e me desculpo por imagem tão franca – por onde sai o que pela boca entra.

Alguém duvida de que liberal – por ora instrumento necessário – também seja hiena, um inimigo, sob a mentalidade bolsonarista? A história – sempre ela – ensina. A história ensina também que não terão sido poucos os liberais que, caindo no conto do autoritário liberal, legitimaram e financiaram projetos autocráticos de poder. Projetos autocráticos de poder que não tardariam, chupada meia laranja liberal, a descartar o saco liberal todo como bagaço.

Nenhum comentário:

Postar um comentário