Desde que entendi isso, passei a entender muita coisa. Uma ficha tão simples, que demorou tanto a cair na minha cabeça.
Hoje, no Rio, somos todos especialistas em segurança pública.
Todos nos consideramos aptos a palpitar sobre a intervenção, sobre o que deve ser feito e como e quando. E o pior é que, de certa forma, somos todos abalizados. Convivemos com a falta de segurança desde sempre, já estivemos todos ou quase todos sob a mira de armas, já vimos o exército entrar e sair da cidade inúmeras vezes, achamos a coisa mais normal ver um carro da polícia circulando com canos de fuzis saindo pelas janelas, enquanto a tiragem lá dentro conversa despreocupadamente. Desenvolvemos habilidades e estratégias, criamos e consultamos aplicativos e rezamos para voltar vivos para casa, mesmo quando somos ateus.
Ao mesmo tempo, incorporamos a violência de uma forma bizarra. O exemplo mais extremo é a naturalidade com que aceitamos a contravenção na direção das escolas de samba, e as suas relações incestuosas com o poder. Participamos de corpo e alma dos desfiles, optando por não lembrar como são financiados. Mas essa complacência vai além do carnaval, e está presente o ano inteiro no nosso cotidiano de malandragem, no absoluto desprezo que devotamos às regras básicas da cidadania: pequenas coisas que não matam ninguém, mas que compõem um coquetel tóxico de incivilidade.
Entrar na fila, respeitar a sinalização? Ora, imaginem. O barzinho que funciona até altas horas na zona residencial é bacana, o barulho da praça que não deixa ninguém dormir é sinal de alegria, o bloco que invade o aeroporto aos berros é apenas contestador porque grita “Fora Temer!”, e gritar “Fora Temer!” é sinal verde para qualquer transgressão. Pichação é manifestação de inconformismo e não deve ser reprimida, quebrar equipamento público é válido, destruir canteiros e jardins não é nada porque, afinal, o mundo é cruel.
A violência e a incompetência do estado, inquestionáveis há décadas, servem no Rio como justificativa para um comportamento coletivo cada vez mais antissocial e selvagem, uma espécie de buraco negro da cidadania. Como o Estado não faz a parte dele, achamos razoável que a população não faça a sua, sem perceber para onde nos leva essa espiral de desordem.
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Há dias não faço outra coisa a não ser ouvir sobre a intervenção, conversar sobre a intervenção, ler sobre a intervenção. Alguma coisa tinha que ser feita no nosso estado desgovernado, e afinal alguma coisa foi feita; por isso, em princípio, não sou contra ela, ainda que as suas intenções sejam questionáveis. Mas ou ela é para valer, e vai em cima da polícia e dos verdadeiros chefões das quadrilhas, ou não vai adiantar nada: ou ela desmantela a estrutura corrompida da segurança no Rio de Janeiro, ou logo teremos, além da violência do dia a dia, um exército desmoralizado. E ou ela se faz para todos, respeitando igualmente toda a população, ou vai criar uma situação injusta e insustentável. É uma cartada perigosa, um band-aid em cima de uma ferida que só uma longa cirurgia resolverá.
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