Décadas atrás, o grande poeta Czesław Miłosz (1911-2004) escreveu a sua "Mente Cativa", uma meditação sobre a forma como os intelectuais poloneses se entregaram nos braços das sereias marxistas.
Contava Miłosz, então no exílio, que essa rendição era voluntária. Só raramente, muito raramente, havia violência estatal.
Os intelectuais marchavam pelo materialismo histórico e engoliam todo o jargão correspondente ("luta de classes", "falsa consciência", "forças de produção" etc.) porque sentiam o medo da irrelevância. Não no sentido mais prosaico de não terem como publicar os seus livros se persistissem no erro do pensamento livre.
Esse medo da irrelevância era de outra ordem: se o marxismo, enquanto teoria científica da história, representava a última palavra na explicação dos assuntos humanos, ninguém queria ficar para trás. Ninguém queria perder esse trem.
No fundo, ninguém queria devotar a vida inteira tentando provar que a Terra era redonda quando Marx e Engels tinham garantido que ela era plana.
Hoje, relendo a prosa que os "intelectuais orgânicos" nos deixaram, percebemos que foram eles os verdadeiros perdedores da história: as suas páginas são monumentos ao vazio, à irrelevância e à estupidez.
Mas é um erro pensar que as sereias da unanimidade burra desapareceram depois da queda do Muro de Berlim. Que o digam Tyler Cowen e Alex Tabarrok, dois professores da Universidade George Mason, que partilharam no seu site Marginal Revolution vários estudos estatísticos sobre as palavras ou expressões que passaram a dominar o New York Times nos últimos anos.
Alguns dos termos são óbvios porque exprimem realidades geopolíticas incontornáveis (ex.: China). Outros foram decrescendo de importância porque a "destruição criativa" do capitalismo não perdoa (ex.: General Motors).
Mas o que mais impressiona na contabilidade são palavras ou expressões que literalmente não existiam --e que explodiram de um dia para o outro, passando a deter uma importância hegemônica.
Anote, leitor: masculinidade tóxica; racismo sistêmico; transfobia; ableísmo; islamofobia; discurso de ódio; "mansplaining"; apropriação cultural; microagressões; "safe space"; "fat shaming"; identidade de gênero; interseccionalidade.
À primeira vista, nada de anormal: novas realidades implicam novos nomes para compreensão e estudo. Sempre assim foi: a história da ciência é também a história da terminologia científica.
O que é anormal, porém, é a predominância de conceitos ou categorias que remetem para fenômenos vitimários, como se o mundo se tivesse transformado numa nova caricatura marxista, com novos opressores e novos oprimidos.
Fato: o proletariado já não existe como sujeito histórico (mentira, claro, o proletariado continua a existir, mas agora vota na extrema direita porque foi abandonado pela esquerda tradicional).
Mas, no seu lugar, existem as mulheres, os negros, os muçulmanos, os gordos, os trans —novas classes de vítimas que sofrem às mãos dos homens, dos brancos, dos cristãos, dos belos, dos hétero.
O fato de essas palavras ou expressões aparecerem em força com o novo milênio, ou seja, depois do colapso do comunismo, só reforça a velha ideia de que nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma. É o mesmo roteiro maniqueísta interpretado por atores diferentes.
E quem fala em marxismo fala em "intelectuais orgânicos": como no passado, e tendo o New York Times como cobaia, eles pensam e escrevem com a cartilha ideológica do momento.
Um filme que não tenha um compromisso com a "inclusividade" é tão herético como era o "sentimentalismo burguês" para os censores do realismo socialista. Um livro com personagens sexistas ou misóginas é tão intolerável como era o formalismo para os sacerdotes da estética moscovita.
Sim, as notícias da morte do marxismo foram manifestamente exageradas. Mas, se a história ensina alguma lição, é que aqueles que marcham com o "espírito do tempo" acabam por desaparecer quando esse espírito desaparece também.
Um dia, olharemos para os dogmas mentais do presente com o mesmo espanto com que olhamos para os dogmas pseudocientíficos do passado.
E a pergunta, inevitável, será semelhante: "Como foi possível escrever e acreditar em tanto lixo?".João Pereira Coutinho
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