É espantoso, porém, para uma nação que pretenda se definir como tal, seguindo as palavras de Ortega y Gasset (“uma nação é um projeto de vida em comum”), que não haja uma condenação clara às barbaridades perpetradas por aqueles que, sem sombra de dúvida, tramaram um golpe de Estado na transição entre 2022 e 2023.
O fato de que, em função do receio de “cancelamento” por parte dos cangaceiros das mídias sociais, uma parte do corpo político do país conserve a ambiguidade diante daquelas manifestações criminosas revela que a nação está, em parte, doente.
Se aquele bando que tentou “virar a mesa”, revertendo o resultado das eleições e subvertendo a ordem constitucional, fez o que fez, foi por entender que forças relevantes do país iriam amparar tais disparates.
Se naquela época o que se tentou já era um despropósito completo, hoje, à luz do que se sabe da famosa gravação daquela reunião indecente, a ambiguidade é um atestado de falta de liderança.
A sociedade brasileira em peso, seus políticos, suas lideranças empresariais, os governadores etc. deveriam deixar cristalinamente claro que não há outra atitude diante daquelas aberrações que não um repúdio veemente. Não nos enganemos: o fato de que isso não tenha ocorrido revela muito sobre nossas deficiências.
O filósofo José Ingenieros, no seu magnífico “El hombre mediocre”, publicado em 1913, qualifica a mediocridade como uma “incapacidade de ideais”, definindo idealistas como aqueles “dispostos a emancipar-se do seu rebanho, procurando uma perfeição que vá além do atual”, reconhecendo que “a Humanidade não chega onde desejam os idealistas, mas sempre chega além de onde teria ido sem os seus esforços.”
Ele marca a devida distinção entre o que se espera de quem tem o dom de se destacar e aqueles que apenas copiam o que entendem que os outros esperam que seja feito, ao afirmar que “a personalidade individual começa no ponto preciso onde cada um se diferencia dos outros.”
Na definição do arquétipo que dá nome ao livro, ele escreve que “o homem medíocre está adaptado para viver em rebanho; sua característica é imitar aqueles que o cercam: pensar com cabeça alheia e ser incapaz de formar ideais próprios.”
E conclui que, no que qualifica de “mediocracia”, ou seja, no “governo dos medíocres”, o que se observa é que “os governantes que não pensam parecem prudentes; os que não roubam resultam exemplares. Ao invés de heróis, declaram-se administradores discretos.”
Ora, o papel de liderança vai muito além de apenas agir da forma que parte da população espera que o político atue e, sim, implica definir um rumo, com base em valores que deveriam ser inegociáveis. Há situações em que um governante — ou aspirante a sê-lo — deve fazer um risco de giz e deixar claro que, em relação a certos pontos, será intransigente.
Não importa se em um primeiro momento ele não tiver a compreensão de todos: com o tempo, ganhará o respeito e a admiração pela sua atitude.
É isso o que se deveria esperar de lideranças: que sinalizem claramente que nunca mais o país deveria assistir a um espetáculo deprimente como o que, desde os mais altos escalões da República, se tentou encenar em 2022.
Por uma ironia, a divulgação desses fatos se deu quando eu estava lendo o livro de Kissinger, “Liderança”. O contraste entre a coragem do general De Gaulle — quando, praticamente sozinho, baseado no que Kissinger descreve como o “senso nato de autoridade pessoal” de um “brigadeiro sem um tostão, exilado numa terra cuja língua não conhecia”, lançou as bases da Resistência francesa — e a atitude dócil dos nossos “caballeros de triste figura”, curvando-se diante do chefe quando estava se tramando uma atrocidade institucional, é a expressão de um país aviltado. Pobre Brasil.
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