segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O futuro que já não conheceremos

Todos intuímos que algo muito importante se perdeu para a humanidade com o incêndio que destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Sendo biólogo e conhecendo as coleções científicas que abrigava, também compartilho uma raiva e uma tristeza monumental com todas as pessoas com quem falei sobre o assunto, do eletricista que está trabalhando na minha casa em Porto Alegre até meus colegas professores da universidade onde pesquiso e ensino Biologia. Todos concordamos que a perda do museu representa um exemplo muito claro e tangível de uma dinâmica tristemente cotidiana para os que vivemos no Brasil: somos traídos vilmente pelas instituições públicas responsáveis por cuidar do patrimônio da nação. No entanto, poucos conseguem entender todas as dimensões daquilo que perdemos.


Um museu atua em três frentes. Oferece um olhar para o passado, ou seja, um parâmetro para medir mudanças, uma escala de tempo. Também educa, no presente, sobre o mundo que nos rodeia, tanto o físico como o das ideias. E, principalmente, cria oportunidades para resolver problemas que ainda não somos capazes nem de imaginar. Ou seja: abre portas para o futuro desconhecido. E esse potencial, como é imprevisível, é sem dúvida a mais tremenda das perdas que sofremos no domingo passado.

Nos séculos XVIII e XIX, ninguém imaginava que a mudança climática causada pelos humanos seria um dos maiores desafios da humanidade no século XXI. No entanto, foram os dados coletados sobre a distribuição em altitude da vegetação entre 1773 e 1858 por Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland nas montanhas do Equador − cuidadosamente preservados em coleções científicas − que, em 2015, permitiram que a humanidade entenda o efeito do aquecimento global na distribuição da vegetação. Quem diria aos milhares de paleontologistas que dedicaram suas vidas a coletar e preservar fósseis em todo mundo durante séculos, e aos cidadãos que com seus impostos e doações permitiram que estes cheguem até nossos dias, que esses restos orgânicos mineralizados acabariam sendo a evidência empírica definitiva de um problema que nem sabíamos que poderíamos ter: um evento de extinção em massa de espécies, equiparável em magnitude à dos dinossauros.

Ou, mais perto de casa, o crânio de Homo sapiens conhecido como Luzia esteve 20 anos nas coleções do Museu Nacional até que um pesquisador descobriu sua importância. Conhecer a data da colonização da América não é algo sem importância. Permite, entre outras coisas, entender a capacidade dos humanos de povoar e conquistar um continente.

Fechou-se repentinamente a porta para futuras descobertas desse tipo, que poderiam ter saído do incalculável patrimônio científico do museu. As políticas mesquinhas dos sucessivos Governos − cada um agravando uma situação que já era insustentável − em relação ao patrimônio só podem ser fruto de uma ignorância superlativa combinada com interesses legalmente turvos. Mas, na verdade, isso não está muito distante de outros episódios como a recente anistia aos destruidores da selva, a impunidade diante da catástrofe ambiental no Rio Doce e o abandono de museus e edifícios históricos, que já causou o incêndio que destruiu em 2010 a coleção do Instituto Butantan, que é responsável pela maior parte dos antídotos contra veneno usados no Brasil.

Em um museu de ciências podemos aprender as semelhanças e diferenças entre os humanos e outras espécies de primatas, ou que nosso corpo contém tanta quantidade de microrganismos (principalmente bactérias, sem muitas das quais morreríamos), que eles equivalem em número às nossas próprias células. É o lugar onde nossos filhos podem aprender que o ovo evoluiu milhões de anos antes que a galinha. Onde os descendentes do povo Wari’ podem ir para entender como viviam seus parentes poucas gerações atrás. É onde aprendemos de forma intuitiva nossa insignificância no universo. No domingo, entretanto, aprendemos nossa insignificância no Brasil. Juntamente com o Museu Nacional ardeu muita da nossa memória, nosso presente ficou mutilado e nos roubaram um futuro que agora nunca conheceremos.
Santiago Castroviejo-Fisher, professor de Biologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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