segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Agora falta o Ipiranga

Não existem coincidências, nem acaso! Aquilo que atribuímos a tais circunstâncias constitui “a lógica de Deus”, na visão de Bernanos. O que o Criador teria pretendido mostrar com a tragédia do Museu Nacional? A metáfora do Brasil em chamas, pois queimou os valores, menosprezou a probidade, incensou o sucesso material e estimulou a hegemonia da posse, do poder, do prestígio a qualquer custo.

Educação, cultura, ética são palavras que perderam o seu sentido, tais os ataques semânticos perpetrados contra os verbetes e contra o que pretenderam significar. Estão presentes no discurso de todos, principalmente dos menos sensíveis a encará-los com seriedade. Não será por acaso que se deixa de investir na preparação das futuras gerações. Pessoas conscientes, com capacidade crítica, não pactuariam com os rumos conferidos à vida pública. Teriam discernimento para eleger melhor. Fiscalizariam aqueles que se autoproclamam “servos do povo”, mas atuam como “donos do pedaço”, para perseguir outros interesses. Nem todos lícitos, conforme a História recente comprova.


O abandono dos museus reflete essa tendência de inverter a equação de um processo que respeitaria a memória, que incutiria na criança e no jovem o apreço por aqueles que permitiram a preservação de uma Nação territorialmente íntegra. De uma Nação que teve um imperador respeitado, mecenas a sustentar inúmeros patrícios num consistente aprendizado na então considerada fonte da sabedoria, a velha Europa.

Quanta degradação a partir de então. Seu avô, dom João VI, conseguiu salvar das tropas napoleônicas tesouros insuscetíveis de avaliação financeira, pois sabia que lhes era destinado viver muitos anos – talvez até o final da existência – na colônia e que precisava de elementos substanciais à nutrição do patriotismo. Do senso de pertencimento. Não foi uma excursão turística, mas uma transferência do Reino para o Novo Mundo.

Tais relíquias subsistiram às tempestades. Foram abrigadas e tiveram lugar de honra no Vice-Reinado convertido em Corte. Aos poucos, a criança treinada para imperador do Brasil evidenciaria seus dotes de estadista e acrescentaria à coleção do avô outros inestimáveis valores. O respeito que dom Pedro II fruía em todo o planeta foi a porta de acesso a bens históricos, arqueológicos, geológicos, culturais. Não foram apenas 200 anos os que se consumiram no flagelo daquela noite de domingo. Foram milhares de anos de História. Luzia, o primeiro fóssil destas plagas, conseguiu permanecer como testemunho dos primórdios da civilização por 12 mil anos. Não suportou o descaso do governo, cego ao que realmente vale a pena.

Emblemático o incêndio no início da Semana da Pátria. São Paulo, que pretende celebrar o segundo centenário da Independência daqui a poucos anos – em 2022 –, deve prestar atenção. Também viu imersos em chamas alguns de seus mais significativos modelos de museus, alguns já sob a contemporânea concepção de usina produtora de transformações sociais. O Memorial da América Latina, que deveria ser o centro de manifestações que irmanassem esta parte do globo, tão desunida e tão desigual, ardeu em flamas. Se tivesse atendido em plenitude à sua vocação, talvez não tivéssemos uma Venezuela dizimada como a destes dias. Poderíamos influenciar nossos coirmãos à adoção de políticas públicas democráticas e harmonizadoras, em lugar de favorecer ditaduras escancaradas ou disfarçadas.

O Museu da Língua Portuguesa consumiu-se no fogo. Deixou de receber crianças que talvez acordassem para o prazer da leitura e não engrossassem a legião dos desletrados ou analfabetos funcionais que mostram a falta de carinho governamental com os educandos.

O Butantan também entrou em combustão. Mas não se ouviu choro ou indignação compatível com a perda sofrida por essas calamidades, célere retrocesso rumo à indigência cultural que a mediocridade sustenta e aplaude.

Agora só falta o Museu do Ipiranga, cujo nome não é esse. É Museu Paulista. Fruto de subscrição pública, pois desde a Independência já não se comovia o governo com a valia de aplicar recursos em História, em memória, em culto ao passado. Só interessa a ele uma única dimensão de tempo: a da próxima eleição!

A justificativa para não terminar as obras do Museu do Ipiranga é sempre a mesma: falta de recursos. Estes não faltam para estações ostentosas de Metrô, com estética modernosa, que encarece o que poderia ser mais comedido, menos pretensioso. Também não parecem faltar para outras obras que “permanecem” e servem para avalizar candidaturas. Já as obras intangíveis, estas não entram em cogitação. Por que se lembrar de Pedro I, de Leopoldina, de José Bonifácio, o patriarca, de Amélia de Leuchtenberg?

A fome de cultura contemporânea se retroalimenta de “viradas”, de shows, de “pancadões” e de happenings, de instalações e de outras manifestações. Ninguém é contra elas. Para certa parcela dos pensadores, tudo o que o ser humano faz e modifica o ambiente pode ser chamado “cultura”.

Mas desconhecer, premeditadamente, o que a ancestralidade legou é condenar o porvir a reiterar equívocos, a não se orgulhar de epopeias que explicam certas contingências que ainda hoje definem nossos rumos. Sonegar recursos do povo, resultantes da volúpia arrecadatória exercida sobre gente cada vez mais miserável e excluída, é o decreto de morte da potencialidade de redenção da indigência cultural a que ela foi execrada.

Reduzida a dimensão de um Estado que se mostra, ao menos em sua imensa parcela visível, impregnado de corrupção e de ineficiência, não faltariam meios para salvar o que ainda resta de tradição e de lembrança. A respeito de tudo isso, o que dirá o memorialista da posteridade dos atuais governos?

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