quarta-feira, 26 de maio de 2021

Se há uma ventura na clausura

A janela e sua gelosia em um esboço de praia em suas linhas fundamentais de céu, areia e mar, desfocando e balouçando ao rumor da maresia e do vento. Um horizonte incompleto de prédios forma um skyline recortado em quadrados baixos, provinciano, aparentemente desabitado. Uma usina de gás, puro esqueleto, utilidades esquecidas que agora mais proveitosas parecem por ainda ocuparem seu espaço, além de renderem uma homenagem aos engenhos desaparecidos. O mundo é de mentiras perfazendo nas janelas.

Por que a vida exterior adquiriu uma aparência irreal, enquanto a vida interior se tornou a quadratura da realidade? Precisamos sair para atestarmos que a existência prossegue reunida em suas frações todas? A conjugação das ruas, das árvores, dos postes, das lojas: haverá algo se alterado? Podemos esperar que algum novo tipo de milagre finalmente tenha se desvencilhado da terra dos homens terríveis, para se desenhar diante dos nossos olhos atomizados? O Sol terá sofrido qualquer quebra em sua aparente trajetória expecta? E a sequência: manhã, tarde, noite – terá ela se solucionado em algum outro tipo de divisão?

Reconheceremos rosto, voz e corpo com simpatia? Será de uma futilidade nauseante ou de uma sensibilidade programada a tentativa de transformar os acontecimentos de isolamento pandêmico dos privilegiados em uma fantástica jornada? Conseguiremos, isso sim, enfim pensar nos animais de vida confinada, estes sim completamente apartados de seu habitat? Os encontros quedarão já desinteressados, ou frenéticos, naturais, impensados? Um encantamento pré-pandemia poderá ser revisitado, ou, caso não, se provará um peixe que cedo morre pela boca? Melhor do que se arraste na linha aos poucos, se um bem-querer não se reitera.

E nas esplanadas, os habitantes e os turistas que iniciam a desconfinar bradam ao mundo sua valentia desusada, recostando-se folgazãos no encosto fofo das cadeiras. Tudo vai dar certo. Nem que seja na base da arrogância. Andaremos, na medida e no sentido contrários ao imposto, seremos para já ansiosos, nessa sequência de embaraços, tossindo propositalmente para as mãos ou para os ares, caminhando ledos e fortes sem máscara, tocando indiscriminadamente, um em direção ao outro, em uma fúria, como um estranho orgulho de não ter medo. Haverá madeira ilegal, cloroquina, mísseis interceptados, Ceuta, Bielorússia, Odemira, projetos de leis debatidas sob nosso desconhecimento, alterações à nossa revelia, cuja posterior aceitação tácita por alguns será disposta como uma institucionalização do recrudescimento dos radicalismos desumanos e ilegais?

A exterioridade disposta em quadrados de janelas e varandas, em céus de quintais. Se há uma ventura na clausura… Quando estamos assim, dentro, a realidade exterior se dispõe em retalhos, peças coloridas dispersas. Teremos que as juntar para uniformizar e completar o jogo novamente? A exterioridade do corpo, esta também a ser reconstituída, a ser reconstruída, a ser vestida com o aceitável ou o atraente. E as verdades inventadas a serem confrontadas que os aproveitadores e os ditadores, inicialmente, apenas nos oferecem?
Elisa Andrade Buzzo

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