Pahlavi deu trela. Vendia a imagem de bon-vivant, de um governante moderno e ocidental. Espécie de playboy persa, ao lado de sua bela mulher, a rainha Farah Diba, cuja coroa fora assinada pelos joalheiros Van Cleef & Arpels. Era encenação: por trás da imagem, dava guarida a uma corja corrupta.
Na aparência, Khomeini era seu oposto. Sisudo, barbudo e não afeito a luxos terrenos ou à cultura. Depois de anos de exílio na França, voltava ainda mais fanático. Atrás da estampa, havia um religioso sedento por vingança. Não titubeou em mandar matar vários adversários de sua fé e de sua intransigência política. Pela força, levou a laica sociedade iraniana a retroagir à Idade Média, em crenças e desejos.
Uma de suas vítimas mais célebres, o autor anglo-indiano Salman Rushdie, reapareceu na semana passada no coquetel de lançamento de seu novo livro — “Faca”. Era uma festa privada num restaurante de Manhattan, oferecida pela revista on-line Air Mail, onde se reuniu com escritores, editores e jornalistas. Os amigos se impressionaram com sua disposição e bom humor, achando-o elegante num blazer esverdeado e de óculos com uma das lentes totalmente escura. Sua figura agora lembra a do pirata com tapa-olho. Há dois anos, Rushdie sofreu um atentado. Sobreviveu às 12 facadas que perfuraram diversas partes de seu corpo, cortaram seu rosto, além de macularem seu olho direito, que ficou dependurado no rosto “feito um ovo cozido”.
Quem tentou matá-lo atendia a uma fatwa emitida por Khomeini 30 anos atrás. O aiatolá forjou a mentira de que “Os versos satânicos”, obra de Rushdie, vilipendiavam o profeta Maomé. E assim o condenava à morte. Depois de viver anos escondido, o escritor foi alcançado por um chacal numa pequena cidade no upstate de Nova York. “Faca”, um livro de memórias, reconstrói o atentado e sua recuperação. “A obra não traz ódio”, adiantou Rushdie.
Khomeini morreu em 1989, aos 86 anos, no Irã. Rushdie sofreu o atentado em agosto de 2022, nos Estados Unidos, aos 74 anos. A distância no tempo revela a força e o alcance prático de uma mentira política, que no contexto contemporâneo poderíamos chamar de fake news. O aiatolá desejava impor os ditames de sua religião aos alcunhados “ímpios”. Era ainda um leitor iletrado. “Os versos satânicos” são uma obra poética, baseada numa lenda islamita e na própria vida do escritor, dividido entre a tradição persa e muçulmana e a contemporaneidade ocidental.
O uso da religião pela política, entre várias outras mortes, também está presente no massacre dos jornalistas do satírico Charlie Hebdo, na Paris de 2015. Qual Rushdie, alguns dos chargistas assassinados constavam de uma lista divulgada pela Al-Qaeda como alvos a ser abatidos. Sim, eram “ímpios”.
No germe da intolerância, a mentira e a incivilidade. O conceito revolucionário da urbanidade pressupõe o convívio de diferentes crenças, opiniões e gostos. Para a proteção de tal liberdade de escolha, ao final em defesa da própria vida cidadã, a civilização precisou criar regras e leis. Existem avanços e retrocessos, e mesmo os fracassos fornecem sinais. O fundamentalismo político, agora sob as redes sociais, tem dinamitado o arcabouço da vida em sociedade. Busca-se aplicar uma visão da antiga tribo ao cotidiano contemporâneo. Preconceitos e frustrações ajudam a criar clivagens. Mundo afora, o almoço familiar dominical virou um campo de guerra.
O Homo bolsonarus, da mesma cepa do aiatolá, defende a liberdade de expressão enquanto martela nas redes sociais reincidentes mentiras. Assim se enxerga livre para atirar. O novo discurso deles constrói a irrealidade de que o Brasil vive numa ditadura! Falam até numa ditadura judiciária. Os golpistas do 8 de Janeiro difundem o cenário de um Brasil avenezuelado, sem processo legal.
Rushdie não blasfemou contra o profeta Maomé, como Khomeini e os mercenários da Al-Qaeda difundiram em fake news. Nem o Brasil vive numa ditadura ou Lula transformou o país numa Venezuela. Rushdie vive escondido, com medo de ser morto ou perder o olho esquerdo. Mas seu algoz aguarda julgamento numa prisão americana, para mostrar que a vida e a liberdade de expressão são direitos fundamentais do Homo sapiens.
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