segunda-feira, 22 de abril de 2024

Tudo o que tange a Palestina é historicamente difícil

Não é preciso ser um Voltaire para definir a História como o estudo de todos os crimes do mundo — a começar pelas guerras. Numa segunda categoria desses crimes, mais silenciosos, mas igualmente ruinosos, está deixar passar oportunidades capazes de mudar a História para melhor. Nesta semana, sob instrução do democrata Joe Biden, 46º presidente dos Estados Unidos, seu vice-embaixador junto à ONU desempenhou o melancólico papel de vetar a admissão da Palestina como membro pleno das Nações Unidas. Apesar de esperado, o veto solitário (Grã-Bretanha e Suíça se abstiveram, os outros 12 integrantes do Conselho de Segurança aprovaram a moção) pode ser considerado uma dessas oportunidades perdidas.


Caso não tivesse sofrido veto, a resolução passaria à votação na Assembleia Geral, com aprovação certamente maior que o mínimo necessário de dois terços dos 193 países. Hoje, 140 das nações da ONU já reconhecem a Palestina como Estado. Um acolhimento pleno com direito a voto e assento rotativo no Conselho de Segurança representaria um upgrade simbólico e político (mas não legal, claro) para o país que ainda não é país. Continuará, assim, sendo “não membro com status de observador”. Autoproclamado Estado independente desde 1988, apesar de não ter soberania sobre seus territórios ocupados até hoje por Israel, a Palestina, de que a Faixa de Gaza faz parte, continua a ser este imenso encontro marcado e sempre adiado do mundo democrático com a História.

Ao justificar o veto dos Estados Unidos, o vice-embaixador Robert Wood cometeu contorcionismos verbais para explicar que o veto contra a admissão do Estado Palestino na ONU não refletia oposição ao Estado Palestino. Difícil de entender. Soube-se também que, para evitar ser a única voz dissonante da votação, os americanos se empenharam em tentar aliciar outros integrantes do colegiado. Cópias de memorandos do Departamento de Estado obtidas pelo site The Intercept atestam a pressão exercida sobre o Equador para que convencesse os embaixadores de Japão, Coreia do Sul e Malta (país que preside os trabalhos do Conselho neste mês) a se alinhar aos Estados Unidos. Não deu certo.

Como pano de fundo, havia a emergência de uma guerra entre Israel e seu inimigo existencial, o Irã. As duas fortalezas militares jamais haviam se confrontado mano a mano, preferindo acertar suas contas por meio de atentados terroristas, ataques cibernéticos, assassinatos e agentes intermediários. Na madrugada do sábado anterior, porém, a chuvarada de mais de 300 drones e mísseis iranianos que incandesceu o céu de Jerusalém e se espraiou por todo o território israelense alterara essa realidade... Ainda assim, foi uma resposta anunciada com antecedência aos atores-chave da região e calibrada para poder ser interceptada por Israel e seus aliados. Todos puderam se dar por satisfeitos e declarar vitória. Seis dias depois, o inevitável revide israelense revelou-se ainda mais contido, mais cirúrgico — um ataque de drones atingiu a base militar de Isfahan na sexta-feira, sem que a instalação nuclear iraniana ali fincada fosse atingida. Atendeu à pressão de seu principal aliado, os Estados Unidos, e de coadjuvantes, tanto europeus como árabes, para baixar a pressão.

Fica a pergunta: em troca de que os radicais do governo Netanyahu aceitaram comedimento contra o Irã? A moeda de troca talvez seja Rafah. Na próxima terça-feira, terão transcorrido 200 dias desde a chacina terrorista do Hamas contra civis israelenses. A retaliação desencadeada pelas Forças de Defesa de Israel — eliminação radical do Hamas, mesmo que ao custo da asfixia da vida civil na Faixa de Gaza — ainda não está completa. Falta limpar Rafah, a cidade-refúgio do Sul onde mais de 1 milhão de palestinos desenraizados do Norte se somam aos famintos locais e onde o emaranhado de túneis usados pelos terroristas ainda não foi implodido. Em 200 dias de operação terra-arrasada, 133 reféns israelenses (vivos ou mortos) continuam em mãos do Hamas devido ao estancamento das negociações por um cessar-fogo. Para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, a contenção contra o Irã pode ter valido a pena se conseguir convencer Biden da necessidade de estrangular Rafah — condicional à remoção prévia daquela multidão sem rumo. Difícil.

Tudo o que tange a Palestina é historicamente difícil. O próprio New York Times, jornalão de referência para boa parte do mundo, atualiza constantemente as orientações sobre os termos a ser usados por jornalistas do matutino que cobrem o conflito. Segundo um memorando interno obtido por Jeremy Scahill, cofundador do Intercept, é recomendada a restrição ao uso de termos como “genocídio” e “limpeza étnica”; a denominação “territórios ocupados”, em referência às terras palestinas da Cisjordânia, Gaza e parte de Jerusalém, deve ser evitada. “Palavras como matança, massacre, carnificina muitas vezes contêm mais emoção do que informação. Pensem muito antes de usá-las como sendo suas”, sugere também o memorando. Difícil.

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