Já corria 1h30 do debate promovido no sábado à tarde pelo Instituto de Direito Privado (IDP), do qual é sócio, quando o ministro disse que não seria mais possível tolerar o que se passa no Ministério da Saúde: “É péssimo para a imagem das Forças Armadas. O Exército está se associando a este genocídio”.
Gilmar Mendes foi secundado por dois dos palestrantes, o médico Drauzio Varella, que disse que a entrada dos militares no Ministério da Saúde “não honra as Forças Armadas do Brasil”, e pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, para quem a intervenção de militares na Pasta, substituindo todo o corpo técnico, é tão ou mais sério que uma intervenção do governo na Polícia Federal. O general Eduardo Pazuello, que responde pela Pasta desde 15 de maio, com a saída do ex-ministro Nelson Teich, preencheu todo o segundo escalão com nomes egressos das Forças Armadas.
A resposta do Ministério da Defesa veio, por nota, na tarde do domingo. Nesta nota, assinada pela assessoria de comunicação, a Pasta se limita a prestar informações sobre o envolvimento das Forças Armadas no combate à pandemia, como, por exemplo, o contingente de 34 mil militares, maior, como costumam lembrar, do que aquele enviado à Segunda Guerra Mundial.
Nesta segunda, porém, veio uma nota mais dura. Assinada pelo ministro Fernando Azevedo e Silva, além dos três comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, os signatários, nesta segunda nota, se dizem “indignados” pelos comentários do ministro do Supremo: “Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e, sobretudo, leviana”.
O texto cita a lei do genocídio (2.889), de 1956, para dizer que se trata de crime “gravíssimo”, no âmbito nacional, como na justiça internacional, o que, “é de pleno conhecimento de um jurista”. A nota conclui pela afirmação de que as Forças Armadas, incluindo a Marinha, o Exército e a Força Aérea, “estão completamente empenhadas justamente em preservar vidas”. E informa que o Ministério da Defesa encaminhará representação ao Procurador-Geral da República para a “adoção das medidas cabíveis”.
O presidente Jair Bolsonaro não se manifestou, mas o vice, Hamilton Mourão, que já subscreveu críticas ao Supremo Tribunal Federal, reagiu com a linguagem do polo, esporte do qual é adepto: “Gilmar Mendes não foi feliz. Ele cruzou a linha da bola. Atribuir essa culpa ao Exército é forçar uma barra”.
Apesar de dura, a resposta da Defesa se destaca por não incluir o comandante-em-chefe ao lado das Forças Armadas, no empenho em preservar vidas, e citar um recurso a um instrumento da democracia (representação judicial), em contraposição às ameaças veladas que o ex-comandante do Exército, Eduardo Villas-Boas, fazia ao Supremo.
Apesar da nota dura, a cúpula das Forças Armadas já havia concluído que uma parte da fatura da pandemia cairia em seu colo. Por isso, a permanência do general Pazuello como ministro-interino desagrada a instituição. Um general próximo ao comandante Edson Leal Pujol diz que o Exército não responde pela decisão do general de aceitar o cargo.
Pazuello está sendo pressionado a tomar o mesmo rumo do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos, que gostaria de encerrar sua carreira como comandante militar do Leste, no Rio, mas irá para a reserva antes do que desejava. A transferência deverá ser efetivada até sexta-feria. Restaria ainda Flávio Rocha, almirante quatro estrelas da Marinha, que hoje exerce o cargo de secretário de Assuntos Estratégicos, subordinado diretamente à Presidência da República.
A nota marca ainda uma reaproximação do ministro da Defesa e dos comandantes militares, estremecidos desde que Azevedo e Silva referendou, em nome deles, a participação do presidente em manifestações de apoio em plena pandemia. Desta vez, foram os comandantes que fizeram questão de subscrever a nota em resposta ao ministro do Supremo.
Indagado se Pujol voltaria a receber Gilmar Mendes, como o fez há um mês, um general do gabinete do comandante disse: “O ministro está em Portugal e nós estamos aqui trabalhando pelo povo brasileiro”.
Desde ontem, Azevedo e Silva e o ministro Dias Toffoli, a quem assessorava antes de ir para o governo Bolsonaro, têm discutido uma forma de pacificar a tensão entre Supremo e Forças Armadas, a partir da percepção comum de que Gilmar Mendes exagerou nas tintas.
De Portugal, onde não fez mais declarações, o ministro tem dito a quem o procura para comentar o episódio, que já havia alertado, no plenário do Supremo, sobre a armadilha que Bolsonaro preparara para as Forças Armadas, ao usá-las para um papel, no Ministério da Saúde, que nenhum médico ou profissional que preze por sua reputação, se presta a cumprir.
A opinião foi referendada, no Valor, por Maria Elizabeth Rocha, ministra do Superior Tribunal Militar: “É cômodo para o presidente escolher militares para compor o alto escalão, preenchendo lacunas que, politicamente, talvez ele não conseguisse manejar. São pessoas que nunca vão confrontá-lo, pois ele é o chefe supremo das Forças Armadas”.
Gilmar Mendes tampouco está isolado na sua Corte. O ministro Luis Roberto Barroso já disse que o presidente Jair Bolsonaro, ao povoar o governo de militares, está levando o Brasil a uma “chavização” da política, o seja, transformando o país numa Venezuela de Hugo Chávez.
Desde que chegou a Portugal, Gilmar Mendes tem ficado impressionado com as referências negativas da imprensa europeia ao Brasil. Chegou a comentar que o presidente Jair Bolsonaro não deve pisar na Europa sob o risco de ser notificado pelo Tribunal Penal Internacional.
É na reação a este cerco que o ministro firmou convicção de que Bolsonaro jogará, cada vez mais, sobre o Supremo e os governadores, a responsabilidade pelos crimes da pandemia. Bolsonaro nunca aceitou a decisão da Corte de que a União não podia impor aos Estados as diretrizes para o combate à covid-19, como o uso da cloroquina, uma vez que a Constituição prevê a gestão compartilhada para o Sistema Único de Saúde.
No Supremo não se descarta que governadores que hoje se veem prejudicados por uma distribuição sem critérios técnicos dos recursos da Saúde, venham a interpelar a Corte com uma Ação de Preceito Fundamental, contra o Ministério. Foi sob este fogo cruzado que os militares, pela presença de um general da ativa no comando da Pasta, se colocaram.
Ao acusar os militares de terem se deixado usar pelo presidente no que chamou de “genocídio”, o ministro pagou pra ver o que será a reação fardada quando a acusação for formalizada contra o presidente. Na nota, os militares saem em defesa da corporação mas não estendem a blindagem ao presidente.
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