terça-feira, 14 de maio de 2019

Não há lugar para o homem livre

Coimbra, 14 de setembro de 1961

Voltámos ao tempo das invasões, com a substituiçao dos bárbaros por ideias. O mundo dos valores parece um campo talado. Batida pelos mais contraditórios ventos da intolerância, a alma humana parece um vime a torcer-se. A nenhum espírito, por mais isento que seja, é consentida a paz do seu específico equilíbrio. Essa felicidade gozam-na apenas os bem-aventurados fiéís de qualquer das igrejas que se degladiam, políticas, religiosas, económicas, libertárias, recreativas ou outras. Como nas sociedades primitivas, ou se faz parte dum clã e se aceita o credo da comunidade, ou se perde o direito à própria vida. À vida e à morte, afinal, porque, depois dela, ainda essa mesma intolerância pode salgar, e salga, a memória do réprobo. A solidão, agora, é impossível. Não existe recanto da terra onde caiba um homem livre.
Miguel Torga, Diário 

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