O episódio acima, absolutamente verídico, serviu de base para a construção do personagem principal da peça “O terrorista elegante”, que eu e Mia Couto escrevemos em Moçambique, em janeiro, e que estreou há poucos dias em Lisboa. A peça, uma encomenda do grupo de teatro A Comuna, pretende discutir o clima de medo que se instalou um pouco por todo o Ocidente, e vem justificando as piores arbitrariedades e criando um ambiente de intolerância contra os imigrantes e as minorias étnicas e religiosas, que é, afinal, o que o terrorismo islâmico pretende. A intolerância gera azedume e revolta; a revolta faz surgir novos combatentes, num ciclo de violência que apenas serve para alimentar o próprio fascismo islâmico. O terrorismo triunfa no instante em que a inteligência colapsa.
O terrorismo triunfa no instante em que a inteligência colapsa
Charles Poitier Bentinho, o nosso terrorista elegante, parece, de início, tão desnorteado quanto o personagem que lhe deu origem. Contudo, ao invés daquele, não foge de espíritos maus: pelo contrário, ganha a vida a combatê-los. Uma vez preso, rapidamente se apercebe que os três policiais que o interrogam, um homem e duas mulheres, uma das quais ao serviço de uma agência antiterrorista norte-americana, sofrem, todos eles, de demônios vários: o medo, a culpa, o ciúme, um persistente rancor colonial. Bentinho, o prisioneiro, compreende que a sua missão é ajudar os interrogadores a libertarem-se de tais demônios — e é o que faz.
Passando dos palcos para a realidade, creio que nos fazem muita falta figuras como Charles Poitier Bentinho, capazes de apaziguar os espíritos, mostrando que só é possível vencer a violência através da aproximação. Isto é, quando os homens se aproximarem tanto que, olhando-se nos olhos, consigam ver-se a si mesmos refletidos na alma uns dos outros, como num espelho.
Para desencadear uma guerra, é preciso primeiro fabricar o inimigo. O ato inicial de tal processo consiste em afastar o outro de nós; precisamos torná-lo alheio: o inimigo não é como nós porque não fala a nossa língua, porque não partilha as nossas crenças religiosas, porque não gosta de samba ou de feijoada. Na fase seguinte, o inimigo já não é bem humano. Não sendo humano, pode ser exterminado. Deve ser exterminado.
Para encerrar uma guerra, para pacificar um país ou uma região, urge desencadear o processo inverso: devolver ao outro a humanidade. Aproximá-lo de nós.
A música, a literatura, o cinema, o teatro, constituem, desde sempre, instrumentos de aproximação. Talvez por isso todas as artes sejam tão odiadas e reprimidas nos territórios ainda dominados pelos fascistas islâmicos. A melhor maneira de combater a intolerância é através da cultura. Apoiando escritores, músicos, artistas plásticos etc. nos países de maioria islâmica e dando a conhecer essas expressões artísticas no nosso próprio universo. Tenho a certeza de que haveria enormes surpresas. Quantos brasileiros conhecem, só a título de exemplo, o novo rap argelino ou a vibrante cena rock e de música alternativa das noites de Beirute?
Calunga Gima foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão efetiva pelo crime de atentado à segurança de um transporte aéreo e posse de arma branca. Não se provou que tivesse ligações a nenhum grupo terrorista.
José Eduardo Agualusa
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