Em sua 29ª semana no poder, Jair Bolsonaro ainda soa como se estivesse pisando em solo intergaláctico. Em longa entrevista concedida à revista “Veja”, o presidente se mostra atordoado com o caminho que acredita ter-lhe sido designado por Deus. “Imaginava que ia ser difícil, mas não tão difícil assim”, declarou aos jornalistas Mauricio Lima e Policarpo Júnior. “Essa cadeira aqui é como se fosse criptonita para o Super-Homem. Mas é uma missão. Entendo que Deus me deu o milagre de estar vivo”, disse, referindo-se ao atentado à faca que sofreu em setembro passado. “Nenhum analista político consegue explicar como eu cheguei aqui, mas cheguei e tenho de tocar esse barco...”
Na sexta-feira, poucas horas após a publicação da entrevista regada a lamentos e autoelogios superlativos, deu uma remada a mais no seu modo de tocar o barco. “Será que não está na hora de termos um ministro evangélico no STF?”, perguntou aos fiéis presentes à Convenção Nacional das Assembleias de Deus Madureira, numa estocada adicional contra a criminalização da homofobia sendo julgada no Supremo.
Para quem fica algumas semanas de folga do ciclo noticioso 24/7, pousar novamente no planeta Brasil de 2019 não é banal. O país parece uma casa de espetáculos com programação múltipla, disfuncional: em Brasília há desde sessões matinais de troca de coraçõezinhos entre o presidente e a bancada parlamentar feminina até a matinê “A Praça é Nossa”, em homenagem ao apresentador Carlos Alberto de Nóbrega com aparição "impromptu" do presidente.
Mas há, sobretudo, o horror sazonal das matanças intestinas nos presídios nacionais — desta vez foram 55 os mortos esganados ou perfurados até ficarem exangues, em quatro unidades do Amazonas. Para quem tem interesse no tema, recomenda-se aqui o livro “American Prison: A Reporter’s Undercover Journey into the Business of Punishment”. Trata-se de um mergulho quase dickensiano no universo do sistema prisional americano gerido por empresas privadas. Nada a ver diretamente com a Umanizzare, empresa responsável pela gestão dos convulsionados presídios amazonenses, mas seminal. O autor é Shane Bauer, repórter investigativo da “Mother Jones”.
O planeta Brasil de hoje (como de ontem, aliás) parece ter um braço extraterritorial em Lisboa, Harvard, China, Jerusalém, tantas são as escapadelas individuais ou caravanas para eventos, seminários, viagens oficiais. A novidade são os desconvites — somente no mês de maio o próprio Bolsonaro achou prudente evitar Nova York e contentar-se com Dallas para receber um prêmio, enquanto o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tratou de cancelar um giro europeu (Paris, Oslo, Berlim, Londres) que tinha tudo para dar errado. Não apenas as lideranças europeias preferem manter distância da atual política de desconstrução ambiental do Brasil como o ativismo ecológico no Velho Continente está mais vibrante do que nunca — é provável que o giro de Salles teria tido um séquito interminável de protestos de rua.
Adicione-se a ideia de Bolsonaro, apresentada sem sutilezas, de transformar a Estação Ecológica de Tamoios, em Angra dos Reis, numa pulsante Cancún turística. Ela consegue soar mais desvairada ainda do que a imagem do recente engarrafamento humano no topo do Everest.
Ao contrário do que se pensa, governos populistas não se diferenciam dos demais por criticarem as elites, pois apontar falhas nas altas esferas do poder é essencial a democracias. A característica dos populistas, ensina Jan-Werner Müller, professor de Teoria Política de Princeton, está em se apresentar como únicos representantes do que seria o cidadão de bem, o verdadeiro cidadão. As demais lideranças nacionais passam a ser retratadas como potencialmente corruptas, usurpadoras ilegítimas da confiança popular, e quem as apoia não seria povo.
Selecionar um povo ideal que caiba no figurino imaginado é o sonho quântico de todo populista. Para o povo real, poder contar com alguma política de educação coerente já seria milagroso.
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