terça-feira, 27 de outubro de 2020

Após a tempestade

Em tempos de imprevisibilidade, como os atuais, o remédio é se agarrar ao velho ditado “a cada dia a sua agonia”. A quarentena universal matou o presente e nublou o futuro, principalmente o econômico, mas cada um em seu quintal enfrentou de forma mais ou menos eficiente o ano que a pandemia nos roubou.

A negação da tragédia não foi exclusividade brasileira, mas sua permanência como bandeira do governo federal custou não só vidas, como também desorientou a população e deixa como única previsão possível uma derrocada econômica que se fará visível em toda a sua extensão no próximo ano.

Os dados recentes apontam 14 milhões de desempregados – um milhão a mais que o número herdado pelo atual governo. O Sebrae registra R$ 105 bilhões em débitos acumulados pelas micro e pequenas empresas e prevê uma nova onda de fechamento de empresas. O ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola, alerta para uma fuga de capitais em curso.

Nesse contexto é razoável raciocinar que o ano de 2021 poderá ser melhor em relação à questão sanitária, caso surja efetivamente a vacina buscada pelos cientistas. Mas o mesmo não se pode sustentar em relação à economia e aos dramas sociais. Ainda que tudo volte ao “velho normal”, os danos são de lenta recuperação.


Loyola adverte para a delicadeza da situação fiscal e apela ao Congresso Nacional para um orçamento em 2021 de respeito ao teto de gastos e com responsabilidade fiscal. “Temos grupos fortes dentro do governo que estão defendendo aumento de gastos e o rompimento do teto”, disse à agência americana Bloomberg.

O gerente de políticas públicas do Sebrae, Silas Santiago, em audiência pública no Congresso disse que o crédito não chegou à maior parte das micro e pequenas empresas e defendeu a suspensão do pagamento de tributos para esse segmento, o que já sugerira em vão o ex-secretário da Receita, Everardo Maciel, e um parcelamento especial de débitos relativos a impostos (Refis do Simples Nacional).

O presidente do Sebrae, Carlos Melles, avalia que somente 50% das microempresas buscaram crédito, pois a outra metade não tem “receptividade” por parte dos bancos, e, das que procuraram, ele informou que somente 22% foram atendidas.

Por ironia, ou não, o diagnóstico do presidente da Confederação Nacional das Micro e Pequenas Empresas e Empreendedores Individuais (Conampe), Ercílio Santinonni, lembrou declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, na célebre reunião ministerial de abril, ao afirmar que “o “pequenininho não teve acesso ainda ao crédito”.

Guedes defendeu, na ocasião, que o governo se preocupasse com os grandes, pois com os pequenos perderia dinheiro. Criticado, disse que a frase foi mal interpretada e retirada do contexto. Bem, o contexto é o que está aí, nos dados que servem de certidão de óbito de centenas de empresas.

Governo não é banco, e vice-versa, mas é do primeiro a sinalização aos agentes financeiros para o rumo a seguir. Em ambiente de medidas claras, conceitos responsáveis, método e programação, se instala a confiança que faltou para que o crédito chegasse não só aos que conseguiram manter alguma reserva, mas também para aqueles que desidrataram no deserto.

As reformas, principalmente a administrativa, patinam como ideias salutares, mas nem o Legislativo e nem o Executivo dão sinais efetivos de vontade política para leva-las a termo. Elas poderiam amenizar o gargalo que drena qualquer otimismo para 2021.

Poderia estar pior, não fosse o auxílio emergencial que chegou à sonora quantia de R$ 300 bilhões e serviu de colchão para 70 milhões do segmento de baixa renda. Mas ele tem limite e o mais provável é que passado o vendaval o poder de consumo não corresponda à oferta.

Tudo é incerto no contexto político, portanto, dada a precariedade da economia e o pessimismo justificado quanto à capacidade de recuperação em curto prazo. A questão sanitária, admitida a vacina, pode devolver o ânimo geral, mas o recomeço econômico não autoriza otimismo.
João Bosco Rabello

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