domingo, 3 de abril de 2022

A lição esquecida da Guerra Fria

A condenação da brutalidade da invasão russa da Ucrânia, não dispensa, antes exige uma profunda reflexão para compreender a magnitude do que está em causa, as suas raízes, e sobretudo as suas consequências prováveis.

No verão de 2018, a convite da revista Visão História (n.º 47), escrevi um texto que agora retomo, pois ganhou uma trágica e clamorosa atualidade. A tese é simples: o fim pacífico da guerra-fria poderia ser lido de duas maneiras. A primeira, em que Gorbachev e milhões de cidadãos de todo o mundo acreditaram nos anos 80 e 90, como uma rutura epistemológica, capaz de nos libertar das milenares doutrinas bélicas e da secular conceção de soberania estadual absoluta gizada desde a Paz de Vestefália (1648). A segunda, praticada de forma continuada pelas administrações dos EUA, a partir de 1999, como a guerra-fria ter sido vencida pelo Ocidente e a Rússia, como potência derrotada, poder ser ignorada na reconstrução do novo mapa-mundo geopolítico.


A invasão da Ucrânia por Putin, num perigoso gesto que coloca em risco a paz mundial, não resulta de uma divergência, mas sim de uma concordância fundamental entre Putin e o Ocidente. Também ele acha que a tradicional doutrina da soberania nacional/estadual absoluta é a válida. Também ele considera que a Rússia perdeu a guerra-fria, e que é tempo de reverter o curso dessa derrota. A tragédia que nos poderá levar, mais tarde ou mais cedo, a uma hecatombe atómica global resulta, não de uma discordância, mas de uma mortífera concordância entre o Ocidente e a Rússia. Como explico abaixo, esquecemos a lição fundamental da guerra-fria, aquela que nos poderia unir como humanidade, forjando um sistema internacional pacífico, guiado pela luta comum contra a ameaça ontológica da crise global do ambiente e clima. Retomo de seguida, integralmente, esse texto de 2018.

No verão de 1983, uma das canções mais populares nas discotecas alemãs – da autoria de um grupo de rock de Bochum, Geier Sturzflug – intitulava-se “Besuchen Sie Europa, solange es noch steht” (“Visite a Europa enquanto ela ainda está de pé”). A inspiração para o tema havia sido retirada de um folheto de propaganda de uma agência turística norte-americana, e o sucesso popular da banda estava ligado de modo diretamente proporcional à dramática escalada da tensão bélica entre a URSS e os EUA, naquela que ficaria conhecida como a crise dos euromísseis.

No dia 1 de setembro desse ano, um voo civil sul-coreano (KAL007) foi derrubado por um caça Su-15 depois de ter entrado em espaço aéreo soviético, morrendo todos os 269 passageiros. Ainda no dia 26 desse mês ocorreu um gravíssimo incidente: o centro soviético de deteção de eventuais ataques com mísseis balísticos intercontinentais sinalizou, ao longo de 15 minutos, o que aparentava serem 6 ICBM dos EUA lançados, um após outro. Felizmente, o tenente-coronel Stanislav Petrov (1939-2017), que estava no turno de comando, assumiu com uma sensatez heroica que se tratava de um erro do sistema, e não informou a hierarquia.

O governo de Andropov estava na altura convencido da possibilidade de um “primeiro ataque” (first-strike) nuclear da NATO. Não será uma temeridade imaginar que, perante essa informação, e de acordo com o princípio em vigor de que a resposta deveria ser o mais rápida possível (launch-on-warning), talvez um erro informático pudesse ter transformado esse dia no maior holocausto da história humana…

Uma semana antes da nomeação de Mikhail Gorbachev como líder da URSS, em 11 de março de 1985, foi publicado em Lisboa o meu livro Europa: O Risco do Futuro (Publicações Dom Quixote). Essa obra, que seria a única do género publicada no nosso país, continha os resultados de dois anos de intensa e apaixonada pesquisa sobre a complexidade da guerra-fria, as suas doutrinas estratégicas, os seus armamentos, os seus dilemas políticos e militares, as suas perspetivas de evolução futura. O foco principal era a segurança de uma Europa ameaçada pelos planos para uma “guerra nuclear limitada”.

Felizmente que com Gorbachev, a sua tentativa de reforma interna do regime soviético, no plano político-social (glasnost: transparência) e económico (perestroika: reestruturação), foi acompanhada de uma decidida aposta no desarmamento, que encontrou eco positivo nos líderes da NATO, em especial em Reagan e Margaret Thatcher. O resultado menor culminaria, em dezembro de 1991, no desmembramento pacífico da URSS. O essencial, contudo, foi ter-se evitando uma III Guerra Mundial que teria dizimado a humanidade e afetado criticamente o ecossistema planetário.

Para quem mergulhou na compreensão do software, delicado e sofisticado, da tensão bélica que de 1945 a 1990 dividiu o mundo entre duas potências centrais e seus aliados, respetivamente os EUA e a NATO, e a URSS e o Pacto de Varsóvia, causa náusea intelectual assistir à repetida tese de que o Ocidente “ganhou” a guerra-fria. Mais do que um erro analítico, tal afirmação reflete uma profunda ignorância. A questão central na guerra-fria é perceber a sua singularidade em toda a história universal conhecida.

Pela primeira vez, desde os impérios antigos até à II Guerra Mundial, uma oposição entre duas megapotências dominantes não culminou, depois das habituais guerras indiretas e de procuração entre aliados e vassalos (proxy wars), num conflito total. Lembro-me de alguns peritos, que entrevistei na preparação do livro, me terem confessado que só um milagre poderia evitar uma guerra atómica, limitada ou total, mas sempre com dezenas ou centenas de milhões de vítimas. Que razões explicam esse milagre?

Charles De Gaulle tinha razão quando insistia, em 1963, na tese de que tanto para a URSS como para os EUA “o estandarte das ideologias [capitalismo versus comunismo] apenas esconde as ambições”. Isso significava que o comportamento de Washington e Moscovo se pautava pelos interesses de conservação e aumento de poder da razão de Estado, como ficou provado no sinistro Pacto Germano-Soviético de 23 de Agosto de 1939, entre Hitler e Estaline. Dois inimigos ideológicos, partilhando de um conjuntural interesse comum, à custa de terceiros.

Mais tarde, nos anos 60, quando a China maoísta considerou a URSS como seu inimigo principal, a proximidade ideológica foi esmagada pela tradicional rivalidade imperial entre a China e a Rússia. Por outras palavras, para percebermos a guerra-fria temos de aceitar a teoria desenvolvida por Carl von Clausewitz no seu clássico e póstumo tratado, Da Guerra (1832), cuja essência pode ser resumida nas seguintes quatro teses principais: a) os sujeitos da guerra moderna são Estados, dotados de interesses potencialmente idênticos, e por isso motivo de contenda; b) a guerra é a continuação da política por outros meios; b) o objetivo da guerra visa a vitória, que se atinge quando se impõe a nossa vontade política ao inimigo; d) a vitória implica, geralmente, a destruição da capacidade militar do inimigo.

O segredo dos mais de 40 anos da guerra-fria reside numa enorme luta, de ideias e de tecnologia bélica, para manter ou invalidar a racionalidade clausewitzeana. Tanto Washington como Moscovo sabiam que com as armas nucleares a realidade da guerra se alterava substancialmente em relação à situação dos campos de batalha napoleónicos, ou das duas guerras mundiais. Com os mísseis balísticos terrestres (ICBM), aéreos (ALBM) ou submarinos (SLBM) um poder de fogo, centenas de vezes superior ao de todas as guerras do passado, podia ser acionado num máximo de 30 minutos! O conceito de frente, de mobilização estratégica, de vitória, no fundo, o léxico da própria racionalidade da guerra estava ameaçado…

A melhor expressão desse estado de coisas foi manifestada pelo secretário da Defesa de J. F. Kennedy, Robert McNamara, na doutrina da Destruição Mútua Assegurada (MAD, em inglês). A paz significaria uma eterna corrida aos armamentos para manter um equilíbrio que impedisse uma guerra total, em que todos sairiam derrotados! Contudo, em 1983, tanto no lado ocidental, com a doutrina Rogers (Air-Land Battle), como no lado soviético, com a doutrina do Grupo Operacional de Manobra, do marechal Ogarkov, estavam gizados planos que poderiam tornar possível a guerra, mesmo nuclear, desde que fosse possível mantê-la dentro de certos limites.

O agora esquecido milagre da guerra-fria, dessa guerra que nunca se travou, não foi nem de natureza ideológica, nem de âmbito tecnológico. Foi uma mudança qualitativa, ética e política, na maneira de pensar a guerra. Com armas nucleares e outras de destruição maciça, a guerra deixa de ser um instrumento, para se transformar no principal inimigo da política. A racionalidade bélica dá lugar, com essa metamorfose, à tese de que a construção da paz, e não a guerra, deve ser o obrigatório instrumento e permanente objetivo de uma nova razão de Estado.

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