quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Desigualdades e desacertos

Informações recém-divulgadas da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do IBGE sinalizam pequenos avanços e recuos do SUS — e a persistência do fosso entre quem mais precisa de cuidados e o acesso. Os dados são essenciais para diagnosticar a situação de saúde, captar tendências e orientar as políticas públicas. Entre os dois inquéritos, realizados com intervalo de seis anos, a cobertura para atendimento médico cresceu: era 71,2% em 2013 e passou para 76% em 2019. No mesmo período, o total de pacientes internados aumentou de 6% para 6,6%, revelando pequeno aumento na capacidade do sistema.

 Mas persistem desigualdades nas chances de realizar determinados procedimentos odontológicos e médicos. Em 2019, a proporção de consulta com dentista foi de 36% para quem se situa na menor faixa (menos de um quarto de salário mínimo) e 76% para pessoas da classe mais alta de renda (acima de cinco salários mínimos). A oportunidade para realizar internações e cirurgias foi duas a três vezes maior para quem está vinculado a planos privados de saúde. Consequentemente, o padrão do atendimento na rede hospitalar do SUS difere do organizado pelo setor privado; o público tem maior proporção de casos clínicos, e a assistência suplementar, de pacientes cirúrgicos. 

Os inquéritos sobre saúde realizados pelo IBGE também permitem avaliar o desempenho de políticas públicas específicas. Houve incremento no cadastramento dos domicílios pelas equipes de saúde da família; contudo as visitas de agentes comunitários diminuíram. Os programas públicos de acesso a medicamentos permitiram que 30,5% dos atendidos pelo SUS em 2019 obtivessem ao menos um dos medicamentos prescritos. Esse panorama da aquisição de remédios fica mais bem delineado pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). As despesas com remédios pesam 4% no bolso das famílias com menor renda e representam 1,4% para as que contam com orçamentos maiores. O conjunto de dados fornecidos pelas pesquisas oficiais contém evidências sólidas para orientar decisões sobre prioridades e investimentos públicos.


 Entretanto essas relevantes informações são pouco consultadas pelas autoridades políticas. Basta dedicar um olhar ligeiro às pesquisas para verificar o porquê das imensas filas para cirurgia no SUS, bem como o alcance e as limitações da efetividade de equipes de saúde da família e cobertura de medicamentos. 

Ideias apresentadas como geniais, definitivas, como as organizações sociais, mostraram-se frágeis para superar desigualdades exigentes de políticas que incidam sobre a formação e alocação de recursos humanos, a oferta de serviços e os gastos com saúde. É pura falácia propor “zerar filas”, “ampliar horários de atendimento” sem considerar a precarização dos vínculos dos profissionais de saúde e a diferença entre os valores de remuneração do SUS e dos planos de saúde. Enquanto médicos e enfermeiros tiveram reconhecimento e aumento de salário na maioria dos países, o projeto de reforma administrativa apresentado pelo governo prevê a contratação provisória e salários baixos para os servidores públicos do Poder Executivo, incluindo aqueles que estão na linha de frente do enfrentamento da Covid-19. O crescente gasto direto com saúde, considerado catastrófico, parece não preocupar o governo federal. Em agosto, o ministro da Economia cogitou restringir o acesso ao programa Farmácia Popular para viabilizar o financiamento do Renda Brasil. Retrocedeu, mas insiste no corte de despesas para o SUS.

Ao longo da história houve governos que conferiram maior destaque à saúde e aqueles que levaram adiante políticas incrementais. Essa trajetória, intercalada pela inscrição do SUS na Constituição de 1988, nos assegurou sucesso no controle de riscos e doenças. 

O cancelamento da saúde como política governamental, na gestão Bolsonaro, é um fato inédito. A macabra cerimônia de glorificação da cloroquina “Vencendo a Covid”, no mês passado, e a ausência dos mortos pela pandemia no discurso presidencial no Dia da Independência afirmam o empenho do governo contra a “sombra dos comunistas” e a radical indiferença perante doentes e mortes. Ao contrário de Juscelino Kubitschek, reconhecido pela dedicação para reverter a acepção nacional e internacional do “Brasil, país doente”, o atual presidente será lembrado pela insensibilidade ao sofrimento causado pelas doenças e ao combate a espectros. 

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