sábado, 20 de junho de 2020

Numa das mais deprimentes noites da história do Maracanã, o futebol foi detalhe

Um dos argumentos a favor da volta dos jogos tratava da possibilidade de criar uma bolha de segurança em torno dos profissionais envolvidos nas partidas. Poderosa, a tal bolha. É capaz até de isolar o futebol do mundo ao seu redor, do senso de realidade, de qualquer gota de sensibilidade e empatia. Por alguns momentos, o Flamengo x Bangu jogado no Maracanã pareceu um exercício de gente disposta a provar que o drama que o Brasil atravessa não lhes diz respeito.


Em meio a tanto açodamento para fazer a roda girar, este Flamengo x Bangu foi marcado com pouco mais de 48 horas de antecedência e confirmado de véspera. Mas houve tempo para cumprir todos os compromissos comerciais: as placas de publicidade reluziam, o pórtico do Campeonato Carioca que aguarda os times estava em seu lugar antes do jogo... Mas não sobrou lugar, fosse ao redor do campo, fosse nas arquibancadas vazias, para qualquer referência às famílias enlutadas. Tampouco, por incrível que pareça, aos profissionais de saúde que se expõem ao risco e se submetem a uma maratona com alto custo físico e mental para tentar salvar vidas. Nem os uniformes dos times, com seus tantos patrocinadores, preservaram um lugar para a solidariedade ou um sinal de luto — só o Bangu carregava uma fita na manga da camisa. Toda a noite pareceu planejada como uma desconcertante frieza.

Foi certamente uma das mais deprimentes noites da história do Maracanã. A noite do futebol a qualquer custo para satisfazer interesses comerciais e tramas políticas poderosas. Não parecia importar, sequer, que, no hospital de campanha montado no interior do complexo do estádio, a poucos metros do campo, morreram duas das 274 pessoas vitimadas ontem, dia do jogo, pela Covid-19.

Tudo parecia fora de lugar. A chegada dos times coincidiu com a troca de turno dos funcionários do hospital. Incomparável, neste momento, a importância da missão de uns e de outros. Por outro lado, é importante registrar que o entorno do Maracanã não deixava dúvidas: o futebol é apenas uma das faces de uma cidade que decretou por conta própria o fim da pandemia. Ciclovia cheia, pequenas aglomerações, gente sem máscara e um pequeno grupo reunido para ver o ônibus do Flamengo chegar. O Rio saiu da quarentena e o futebol pegou carona por conveniência.

A única referência à maior tragédia do país em um século foi o protocolar minuto de silêncio, que interrompeu a música de boate do sistema de som do Maracanã. Uma vez respeitado, voltou à total vigência a lei segundo a qual o futebol não tem tempo para dramas que extrapolem o seu universo. Nem o racismo teve vez. Não houve jogador de joelhos ou qualquer outra menção à luta global cotra o preconceito e a opressão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário