domingo, 21 de julho de 2019

Quando todos somos fascistas

Você é um fascista. E o seu vizinho. E também muitos dos manifestantes do último Dia do Orgulho Gay em Madri, segundo a deputada catalã Inés Arrimadas. E as pessoas do município espanhol de Alsasua que gritavam contra políticos do partido Cidadãos. Mas também os militantes do Vox e seus dirigentes, e Matteo Salvini e suas hordas da Liga Norte. Isso sem contar os que declararam a independência no Parlamento da Catalunha em outubro de 2017, os novos partidos que reivindicam Mussolini na Itália e os que dirigem seus veículos pelas cidades sem respeitar as ciclovias. Nenhuma palavra foi tão utilizada nos últimos tempos para desqualificar rivais de todo tipo, para refletir um autoritarismo crescente ou para definir, recorrendo ao passado de forma cansativa, um aroma político que emana do presente e cujas características se repetem no mundo todo sem uma resposta adequada.

O irresistível magnetismo de um período histórico em que alguns, como Umberto Eco, decifraram um estado de ânimo político e moral em permanente retorno tomou conta também do setor editorial. Quase uma dezena de novidades que abordam a questão acabam de chegar às livrarias e indagam sobre suas raízes, personagens e paralelismos com o momento atual. A Itália lidera a tendência com o maior catálogo de propostas, em meio aos rumos autoritários e xenofóbicos do Governo formado pela Liga e o Movimento 5 Estrelas. A obra mais festejada é M. Il figlio del secolo (M., o filho do século), com a qual Antonio Scurati venceu recentemente o Prêmio Strega. Uma extraordinária biografia romanceada sobre a ascensão ao poder de Benito Mussolini – pensada como a primeira parte de uma trilogia que também dará origem a uma série da TV – que triturou definitivamente o tabu de narrar os acontecimentos mais obscuros da primeira metade do século XX do ponto de vista dos carrascos. Certo, mas existem realmente semelhanças entre aquele período e o atual para justificar tanto furor?

Scurati, em plena ressaca pelo prêmio mais importante da Itália (a Alfaguara publicará o livro em janeiro na Espanha), encontra alguns paralelismos em aspectos muito concretos localizados no clima em que o monstro foi forjado. “A analogia mais forte está no sentimento de derrota, mal-estar, abandono, desilusão, rechaço e repulsa à velha classe dirigente e às instituições parlamentares. Também o fracasso da social-democracia de 1919 até 1921, um cenário em que o fascismo encontrou terreno fértil. Esse tipo de sentimento antipolítico, que nada tem a ver com a análise racional de nossa vida, é análogo. Volta a ser detectado, como na época, em elevadas porcentagens do eleitorado. Afeta pais de família, trabalhadores, gente de bem atraída por líderes e movimentos que manifestam abertamente o desprezo pela velha política, mas também pelas instituições parlamentares. A diferença é a violência, nisso não tem nada a ver”, afirma o autor.


Uma pequena burguesia não integrada a nenhuma classe ou grupo social, assustada pela percepção de uma invasão estrangeira; partidos que invocam atalhos extraparlamentares e dão as costas às Câmaras num clima de decomposição; e uma crise econômica incrustrada, que solapou a base da população. Esse clima é sentido há anos no Ocidente e chega até o Brasil, onde Jair Bolsonaro, um capitão reformado do Exército, ressuscita o autoritarismo e defende a tortura e a ditadura militar. Também alcança os Estados Unidos da era Trump: personagens como Steve Bannon declaram seu amor a intelectuais que deram cobertura ao fascismo, como Julius Evola. Por isso, a secretária de Estado do Governo de Bill Clinton, Madeleine Albright, portadora de extensa quilometragem diplomática, alerta com seu Fascismo: Um Alerta (Crítica) que o monstro “não é uma etapa excepcional na humanidade; faz parte dela” e se apresenta atualmente com rostos diferentes. Putin, Erdogan, Kim Jong-un...
Uma pequena burguesia não integrada a nenhuma classe ou grupo social, assustada pela percepção de uma invasão estrangeira; partidos que invocam atalhos extraparlamentares e dão as costas às Câmaras num clima de decomposição; e uma crise econômica incrustada, que solapou a base da população
Todos fascistas, então? Scurati, como a maioria dos intelectuais consultados, denuncia um abuso que gerou o efeito contrário. “Muitos eleitores desses movimentos antissistema, gente integrada na sociedade, reagem também contra o antifascismo porque durante muito tempo ele foi usado de forma irresponsável. Quem quer que fosse de direita era chamado de autoritário, rotulado de fascista. Isso é inexato e já fez com que o antifascismo, abusado e defendido por gente que não conhecia seu verdadeiro significado, acabasse sendo uma arma equivocada para a democracia.”

A questão incendeia qualquer debate entre historiadores, com frequência divididos como a própria sociedade. A maioria concorda, porém, que o mundo não tomou a real consciência do fascismo e não fechou esse capítulo como aconteceu com o nazismo. Emilio Gentile, o maior especialista italiano nesse período, acaba de publicar Quien Es Fascista (quem é fascista). Um título provocador que aborda com todas as letras a superexposição do conceito e a languidez semântica que seu repetitivo eco traz aos relatos e à vida diária. “Esse abuso denota um não entendimento do que foi o fascismo realmente. Aplica-se a personagens com os quais não estamos de acordo, que não nos agradam. Mas não é novo: aconteceu nos últimos setenta anos. Foi aplicado a Eisenhower, Mao, Stálin... Palmiro Togliatti [secretário-geral e fundador do Partido Comunista Italiano] chegou a definir como fascista Carlo Rosselli, que criou o movimento antifascista Justiça e Liberdade. Mas os fenômenos de hoje não têm nada a ver com o fascismo.”

Gentile, extraordinário historiador e um tanto radical nesse campo, acredita que não há nada de novo a contribuir com o estudo do fascismo e que a banalização do termo, transformado em objeto de consumo, já é insuperável. O fascismo pode voltar? “Sim, claro. Como também podem voltar o bonapartismo, o jacobinismo… Estamos usando um termo de maneira inadequada para explicar fenômenos novos. E o erro responde principalmente à incapacidade de enfrentar, com olhar crítico atual, assuntos contemporâneos”, afirma. “A raiz se encontra na falta de uma etimologia precisa, como têm o comunismo e o liberalismo: fascismo só significa agrupar. E hoje se transformou num insulto para prepotentes, antissemitas, autoritários... Mas nenhum populismo atual que invoque o princípio de soberania popular pode ser fascista. O fascismo negava tudo o que derivava da Revolução Francesa. E se o que estamos falando é de nos identificarmos com a figura de um homem forte, de alguém que se dirija diretamente ao povo, então também poderíamos dizer que [o político italiano] Matteo Renzi é um fascista, não acha?”

A origem do termo encontra-se no símbolo romano do fascio (feixe de varas), por sua vez herdado dos etruscos. Os fasci simbolizavam a unidade da soberania, da ordem e do poder supremo capaz de conceder justiça. O mesmo símbolo foi depois usado na Revolução Francesa, na estátua de Abraham Lincoln em Washington e na marca da própria Guarda Civil Espanhola. Um dos primeiros movimentos sociais modernos que o empregaram foram os Fasci Siciliani entre 1891 e 1894: um grupo de inspiração libertária, democrática e socialista de agricultores que defendia seus direitos trabalhistas. Mas a apropriação definitiva chegou em 1919 com os Fasci Italiani Combattimento, fundado por Benito Mussolini em 23 de março de 1919, verdadeira gênese da mudança. Em parte por essa dispersão, por sua difusão pela esquerda e a direita do espectro ideológico, muitos encontram legitimidade para usá-lo nos dias de hoje.

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