segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

(Des)continuidades

Edward Johnston poderia ter se formado médico, mas abandonou a faculdade em Edimburgo para retornar a Londres no final do século XIX. Fascinado por tipografia antiga, passava dias estudando antigos manuscritos medievais no Museu Britânico. Começou então a dar aulas de lettering e em 1906 publicou um livro ensinando suas técnicas, que tinha o sugestivo nome “Escrevendo e Iluminando”.

Em 1913, Johnston foi contratado pela companhia de metrô de Londres para propor uma reformulação da identidade visual das estações. Trabalhando sobre a ideia de um antigo símbolo que combinava um círculo vermelho e uma barra horizontal azul e introduzindo o nome da estação com uma tipografia leve no centro, a proposta de Johnston foi aprovada pelos executivos da empresa e passou a ser adotada em toda a cidade a partir de 1919.

Alguns anos depois, o departamento de sinalização do metrô contratou um jovem desenhista de nome Henry Beck. Sua principal missão era desenhar plantas de engenharia e placas seguindo a tipografia criada por Johnston. Mas, com a expansão das linhas e do número de estações, Beck se incomodava com a complexidade dos mapas do Underground, à época elaborados em escala geográfica.

Apostando na concepção de que o passageiro estava mais interessado na sequência das estações e na conexão entre as linhas do que na distância percorrida entre elas, Beck começou a desenvolver, nas suas horas vagas, um novo mapa. Baseado na ideia de um circuito elétrico e atribuindo cores diferentes para cada linha, o mapa de Beck foi testado em 1933 e desde então tem sido copiado pelos principais sistemas de transporte do mundo, inclusive o metrô de São Paulo.


Se você visitar algum dos vagões antigos das décadas de 1940 ou 1950 expostos no London Transport Museum, localizado do lado de Covent Garden, vai verificar que, a despeito das mudanças no mobiliário, a identidade visual das placas informativas é praticamente a mesma de hoje em dia. Um século depois que suas ideias foram propostas, os logotipos e desenhos criados por Johnston e Beck não apenas continuam a designar as estações e linhas do metrô, como tornaram-se ícones culturais da cidade de Londres e da própria Inglaterra.

O metrô londrino começou a ser desenvolvido em 1863, quando o primeiro túnel ligando as estações de Paddington e Farringdon foi inaugurado. Hoje conta com 402 km, distribuídos em 11 linhas interligando 270 estações que movimentam 5 milhões de passageiros por dia. Em quase 160 anos de expansão praticamente contínua muita coisa mudou, a começar pela tecnologia dos trens, que inicialmente eram movidos a vapor e migraram para a eletricidade com o advento do século XX. A forma de provimento do serviço também foi bastante alterada. Nas primeiras décadas as linhas eram construídas e mantidas de forma independente por companhias privadas, que passaram por um intenso processo de fusões e aquisições. A grande depressão de 1929 levou as empresas ao colapso, forçando a estatização de quase todas as empresas de metrô, ônibus e bondes em 1933. Daí até 2000 o gerenciamento do sistema de transporte urbano na região metropolitana de Londres trocou de mãos entre os governos central e local diversas vezes, até a implementação do modelo atual, uma parceria público-privada controlada pela administração municipal.

O interessante é que essa combinação mágica de estabilidade (da comunicação visual) com desenvolvimento (das linhas, estações e trens) se deu num quadro de frequente alternância no poder entre os dois principais partidos britânicos. Para ficar só neste século, a população de Londres elegeu como prefeitos um trabalhista da ala mais radical, Ken Livingstone (2000-2008), depois o conservador e atual primeiro-ministro Boris Johnson (2008-2016) e atualmente um trabalhista moderado, Sadiq Khan. Apesar das diferentes visões políticas, ideologias e concepções de cidade defendidas por aqueles que a governaram nos últimos 160 anos, nada disso interrompeu o ritmo da capilarização do sistema de transporte e nem sequer suas mundialmente conhecidas plaquinhas de identificação.

Quadro muito diferente observamos no Brasil. Em pleno 2020 não conseguimos implementar uma cultura de avaliar as políticas públicas e julgá-las segundo parâmetros claros de custo-benefício e impacto. Programas governamentais e investimentos estatais ainda são decididos com base no achismo de governantes e burocratas - quando não no oportunismo de corruptos e corruptores mal disfarçado em promessas vãs de aumento do emprego ou do crescimento do PIB.

Mudanças de governo, principalmente quando envolvendo a troca de grupos políticos no comando, trazem consigo a paralisação de programas e tentativas de reinvenção da roda, começando tudo de novo a partir do zero.

Diferentemente do caso do metrô londrino, a cada novo mandato de presidente, governador ou prefeito, programas governamentais mudam de nome, prédios públicos são repintados nas cores do partido do novo dirigente e obras públicas são abandonadas incompletas em função de “novas prioridades”.

No plano federal, Bolsonaro pressiona ministros e assessores para darem uma nova roupagem para o Bolsa Família - preferencialmente com um novo nome que o desvincule do governo do PT. Pior ainda são casos observados nos setores de meio-ambiente, educação e saúde, onde políticas criadas e aperfeiçoadas de modo incremental a três décadas ou mais vêm sendo esvaziadas por motivos ideológicos ou políticos. Mas não se iludam, em diferentes graus, seus antecessores fizeram o mesmo, sempre com o propósito de imprimir sua marca pessoal e colher frutos eleitorais.

Em outubro próximo elegeremos os prefeitos dos mais de 5.500 municípios brasileiros. É boa hora de nos perguntarmos o que de bom vem sendo feito nas cidades em que vivemos e cobrarmos sua continuidade ou melhoramentos. Como diriam os ingleses, mind the gap.
Bruno Carazza

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