quinta-feira, 3 de maio de 2018

A banalização do mal

Diz-se que filho feio não tem pai. Foi mais ou menos isto o que se deu em torno tragédia que envolveu o edifício Wilton Paes de Almeida, que desabou durante a madrugada do dia 1º de maio, no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo. Prefeito, governador e presidente da República foram ao local ''prestar solidariedade'', mas, evidentemente, cada um eximiu sua administração da responsabilidade; ninguém assumiu a paternidade.

A tragédia acabou politizada. O esforço maior foi apontar o dedo para os adversários e encontrar culpados do que compreender a dinâmica social que leva milhares de pessoas a viver em locais como aquele. Culpou-se administrações atuais e anteriores, movimentos sociais sem-teto e urbanistas. Sem provas ou maiores elementos, houve ex autoridade que afirmou que o local servia de abrigo ao PCC — mas não disse o que fez a respeito.

Como se vê, não faltou quem desse bom dia a cavalos; houve até quem se culpasse os próprios pobres por não ter moradia (sic). Ora, ora… Mas, o fato é que, na política, somente notícias boas encontram padrinho. Não faltam oportunistas para assumir a paternidade de uma obra bacana, de um bom plano, da distribuição de recursos. Já no momento ruim ninguém se apresenta. Infelizmente, isso é normal.


Mas, o que não se discute — ou se prefere esquecer — é que o Estado, no Brasil, entrou em colapso. Seja porque não consegue estimular a economia, criar emprego e distribuir riqueza. Seja porque é incapaz de abrigar o povo pobre, sem-teto, miseráveis em situação de rua. Seja porque não consegue evitar ocupações em prédios vazios ou, diante do déficit de moradias inibir a especulação com imóveis ociosos.

Não se implementa políticas públicas inovadoras que estimulem a ocupação legal desses imóveis, que sejam capazes de incluir a população pobre. Por melhor elaborados e mais bem-intencionados que sejam, planos diretores acabam relegados à condição de letra morta da lei, em virtude da falta de recursos e ou de interesse.

Simplesmente, o Estado não existe. Não é porque seja pequeno e insuficiente, nem porque seja mastodôntico e perdulário. Na realidade cheia de paradoxos que é o Brasil, o Estado consegue ser ao mesmo tempo isso tudo: pequeno e insuficiente para o que é necessário e inescapável; mastodôntico e perdulário na má alocação de recursos, na sua apropriação por grupos corporativos, superprotegidos.

Culpa de quem? Provavelmente, culpa de todos. Inclusive, da sociedade que se omite.

O Brasil é um país acostumado a conviver com a miséria, com pessoas dormindo sob marquises, com crianças nos faróis; com pessoas comendo do lixo que recolhem. É também habituado à criminalidade e à violência e nada mais parece escandalizar, tudo se fez banal. Sem açúcar, sem sal, sem indignação. Apenas normal. Banaliza-se o mal.

Pois parece normal que seres humanos, famílias inteiras, tenham que ocupar pardieiros sem luz, sem água, sem sol, sem segurança, sem perspectiva e sem ar. Assim, como parece natural que surjam pessoas que se aproveitam disso. Parece normal que a prefeitura diga que o problema é federal; que o governo, em Brasília, esteja distante, que o presidente da República seja vaiado. Que governantes e ex governantes, depois de décadas de poder, assistam a tudo com ar blasé.

Nas redes sociais, no conforto de seus sofás, na modorra do feriado, os tais internautas se manifestaram informando estarem bem (sic). Marcaram-se como seguros, distantes de um lugar por onde, todos sabem, jamais passariam. Seria cinismo, desaviso ou melancolia por não estrem em Nova York, lugar de atentados terroristas? O terror, no Brasil, se manifesta a seu próprio modo.

Outros tantos, como sempre, preferiram, mais uma vez, demonizar inimigos. Surgiram milhares — talvez milhões — de especialistas, prontos a atirar pedra, capazes de discorrer sobre a questão urbana, o problema da moradia, das drogas, da segurança, da especulação imobiliária; do direito de propriedade, da banditização dos movimentos sociais.

Vem à minha cabeça Max Weber, num trecho de sua ''A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo'' — não, não se trata de um comunista. Diz ele que ''…neste último estágio de desenvolvimento cultural, seus integrantes poderão ser chamados de ‘especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado’”. Esquecem que mesmo feio, todo o filho sempre terá seu pai. E, nesse caso, somos nós.

Carlos Melo 

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