Estava vendo mal e marcou uma consulta. Sempre havia enxergado bem, e, na sua família, a garantia de uma “boa vista” era reafirmada por seus pais e tios que haviam desaparecido com a casa no Ingá, em Niterói, fazia já algum tempo. Mas se a casa tinha virado edifício, o olhar continuava firme embora coberto por óculos que mudavam regularmente.
Zepelim entrando na Baía de Guanabara visto de Niterói |
Poltrona mágica que obriga a sair de si mesmo, por oposição à dos dentistas que invadem nossas almas pela boca. Já letras do oculista, pensou, são um modo primitivo de leitura. Se você nada enxerga, você é analfabeto! Afora isso, o conjunto é numa sequência horizontal e sem sentido, por contraste com a vida que tudo confunde e mistura. Aquilo que você pensava que era grande — por exemplo, o cara que você elegeu e achava grandioso, está na cadeia; os netinhos que ele pegou no colo transformaram-se em jovens admiráveis. Do mesmo modo, o amor de sua juventude pegou uma doença maior do que seu corpo, fazendo o seu coração bater numa mistura de letras, como aquelas sopas que sua mãe lhe administrava nos tempos de brincar no quintal e matar passarinho...
Sentado na boa poltrona ele estava tranquilo até perceber que o F era T; o U era V; e o R era B. Decepcionado, ele via embaçado o que antes era claro como as águas da Praia das Flechas, onde aprendeu a tomar banho de mar na Niterói de sua infância.
O oculista o conduziu a um gabinete semissecreto no qual jazia no centro uma espécie de binóculo preso a uma mesa, “Vamos ver o fundo do olho”, disse o médico.
Ele pensou, mas não disse: (vamos ver é o caralho! Você vai ver; eu vou enxergar e pensar no pior). E, de fato, ele olhou para um túnel negro e viu um pedaço dele mesmo que nada dizia, exceto a má noticia com a qual foi brindado pelo Dr. Murakana:
— Professor, o seu problema não é de óculos, é do olho.
— Como assim, do olho? De que olho?
— Dos olhos, professor, dos olhos... dos dois olhos! Respondeu o oculista.
— Então é sério?
Um mês depois, ele fica diante de um outro binóculo ainda mais sofisticado para ver uma enorme mancha vermelha que o remete ao planeta Marte, pois, do lado oposto da mesa e controlando tudo, há uma médica que, cheia de neutralidade espacial, manipula um computador, deixando ver dentro do túnel uma linha que oscila de cima para baixo e da esquerda para a direita. Enquanto isso ocorre, uma enfermeira segura firme sua testa de encontro a um anteparo, enquanto a doutora da Nasa determina que ele pisque ou abra bem o olho...
Em plena viagem sideral, intrometem-se lembranças infantis. Ele se recorda dos exames de vista que fazia na sua prima Lelilinha quando ia de um olho para o outro...
Um mês depois, o Dr. Flávio Murakana lhe diz solenemente:
— Professor, seu exame revela drusas na mácula. Felizmente são secas...
— Como vamos curá-las?
— Não têm cura! Eu sinto muito professor. É uma degenerescência devido à idade.
— Vai de mal a pior?
— Sim, mas a gente tenta segurar com doses de luteína e lentes prismáticas.
Hoje ele lê com dificuldade. Está vendo a Copa do Mundo chegando perto da televisão. De longe, só enxerga metade do campo e, pior que isso, não vê o principal: a bola, cuja leviana disposição de acompanhar todo mundo ele despreza.
O adolescente dentro dele que ainda pensa em conhecer o Frank e o Mann — sim, o Frank Sinatra e o Thomas Mann — está desapontado. Mas, velho que o contem com os olhos molhados, dá um riso discreto...
Essa crônica é para Zé Paulo Cavalcanti, que a inspirou e, otimista, acha que eu vejo o mundo quando, na realidade, eu só enxergo mesmo Niterói.
Roberto DaMatta
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