Muita gente agora repete a pergunta quando os militantes bolsominions saem às ruas, fantasiados de verde e amarelo, para mais uma marcha da insensatez e do orgulho nazi-fascista.
Os black blocs nada tinham ou têm a ver com os squadistri do duce brasiliense, esses belicosos gigolôs do patriotismo e do farisaísmo evangélico que nos fins de semana pressionam pelo fim da democracia e prometem deflagrar uma guerra civil, uns até já metidos em uniformes de campanha, como se viu num vídeo grotesco e criminoso veiculado nas redes sociais quarta-feira à noite.
Os black blocs – inesperados, incontroláveis e apenas visíveis no breve momento da baderna – vandalizavam símbolos materiais do capitalismo selvagem, atacavam vitrines de butiques, caixas eletrônicos, carros de luxo, jogavam pedras e outros objetos à mão; mas não agrediam pessoas física ou verbalmente; não faziam ameaças nem incitavam a intervenção de outras forças além das suas próprias, que nunca botaram para quebrar exigindo o fechamento do Congresso e do STJ, a reedição do AI-5 e o que mais pudesse resultar de um putsch militar.
De que trevas afinal vieram essas criaturas que se enrolam no pavilhão nacional e, destilando ódio e ostentando uma ferocidade homicida, agridem jornalistas e até enfermeiras, reverberando desejos trogloditas que ressentimentos incubaram, a ignorância exacerbou e o insano, narcisista e messiânico capitão-presidente não se cansa de insuflar?
Meu palpite é que saíram de lugar nada recomendável, onde, no mínimo, reina a escuridão. Como os Morlocks.
Taí um nome que lhes cai bem. Tem mais pedigree que os black blocs. Inventou-o o britânico H.G. Wells, no romance A Máquina do Tempo, a mais lida aventura sobre engenhocas que nos levam ao passado e ao futuro. Zumbis antropoides, que se homiziaram debaixo da Terra após uma guerra nuclear que quase destruiu o planeta, os morlocks viviam aterrorizando os Elois, os habitantes da superfície terrestre. As duas adaptações do livro ao cinema respeitaram sua configuração original: medonhas criaturas de aspecto simiesco (Darwin explica), inteiramente cegas (Platão explica) e canibalescas – os vilões da história.
Cinco décadas atrás, os quadrinhos dos X-Men os reciclaram como mutantes proscritos da sociedade por preconceitos físicos e raciais, que sobreviviam nos subterrâneos de Manhattan, em abandonados abrigos antiatômicos, grandes tubulações de ar refrigerado e esgotos ainda mais carregados de simbolismo. Ganharam outro status sociopolítico no auge da luta pelos Direitos Civis nos EUA, bem mais expressivo do que lhes dera Wells, ao paragoná-los, superficialmente, com a classe operária da Inglaterra vitoriana.
Nossos morlocks assemelham-se aos que nos aterrorizaram no romance e na tela: cegas e desatinadas criaturas incapazes de ver a luz.
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Durante a ditadura militar, sempre que morria um grande artista reprimido pelo regime, alguém espanava o bordão “assassinato cultural” e o devolvia à prateleira da retórica elegíaca. Às vezes era mais uma hipérbole do que uma acusação fundamentada, um desabafo inflamado pela dor da perda e a certeza de que o autoritarismo também destrói vidas por vias tortas.Esta semana caiu na conta do governo Bolsonaro um binômio fadado a prosperar, “suicídio cultural”. Na carta em que justificou seu gesto extremo, o ator Flávio Migliaccio deixou claro que já não aguentava mais ser velho no Boçalnistão.
“Não deu mais”, desabafou. E prosseguiu: “A velhice neste país é o caos como tudo agora”. Migliaccio, que na juventude enfrentou com destemor, tenacidade e arte a ditadura cultuada pelos morlocks, no inverno do seu descontentamento, capitulou. “Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. E com este tipo de gente que acabei encontrando”, arrematou.
Como bem notou a jornalista Cynara Menezes, em sua página na internet, Migliaccio não escreveu uma carta de suicida, mas “um protesto, um apelo, uma súplica”. Mais: “um documento histórico dos tempos atuais”. Cynara foi quem melhor abordou, nas mídias sociais, a polêmica que se armou em torno da divulgação da carta, por alguns vista como uma invasão (ou evasão) de privacidade. Não confere: o ator a deixou na cabeceira da cama, para que todos a lessem.
Manifesto não se engaveta. O “caos” da velhice a que Migliaccio se refere é uma clara alusão à reforma da Previdência e ao contumaz desprezo dos atuais governantes pelos idosos, tidos como vítimas inevitavelmente preferenciais da covid-19 (uma doença que “só mata velho”) e pacientes a sempre serem preteridos por um jovem quando houver apenas um leito com respirador disponível.
Imagine-se na emergência de um hospital, com apenas um leito disponível e dois candidatos: Aldir Blanc, 73 anos, e um garotão qualquer, que não estuda, não trabalha, um inútil. A escolha esperada não é a de Sofia e merecia ser batizada com o nome do ministro da Saúde que a recomendou. Mas para que preservar a vida de um garotão, se ao que tudo indica, seu futuro é uma miragem dantesca?
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