Cada geração reclama da egolatria da seguinte. Dos jovens da Babilônia há milhares de anos aos millennials. Os agora virtuosos baby boomers (aqueles nascidos nas décadas do pós-guerra) foram apelidados na época como a “geração do eu”. Por isso, sejamos cautelosos na hora de interpretar os modismos do dia como mudanças culturais de fundo. No entanto, temos razões para pensar que as placas tectônicas sobre as quais estão assentadas as nossas sociedades democráticas estão se deslocando.
Somos mais individualistas. E isso tem efeitos positivos. Os países onde os valores individualistas predominam têm melhores resultados em quase todas as dimensões do bem-estar humano do que aqueles com valores mais coletivistas. As sociedades individualistas, ao gratificar a autonomia e a responsabilidade pessoal, promovem o desenvolvimento econômico. Os cidadãos têm mais incentivos para investir, inovar e acumular riqueza.
O individualismo também fomenta Governos mais responsáveis. Um estudo realizado pelo economista Andreas Kyriacou, da Universidade de Girona, mostra como os países mais individualistas têm instituições públicas mais imparciais. Por outro lado, as sociedades coletivistas valorizam mais a lealdade e a coesão do grupo. Os Governos sentem que devem favorecer os seus. Assim, naqueles lugares onde os cidadãos têm valores mais coletivistas, as instituições públicas acabam sendo mais nepotistas e corruptas.
No entanto, o individualismo tem um lado escuro: o narcisismo. Dados heterogêneos que vão de operações cirúrgicas até os nomes que colocamos nas crianças indicam que nos tornamos mais egoístas. Os testes psicológicos registram um aumento das personalidades narcísicas. De acordo com o Gallup, meio século atrás, apenas 12% dos adolescentes norte-americanos acreditava ser “muito importantes”. Agora, são mais de 80%. Até as letras das canções, mapas das preocupações cotidianas, também se tornaram mais individualistas e narcisistas.
O narcisismo projeta uma sombra tenebrosa sobre a democracia. Por definição, o narcisista tem problemas para criar empatia e interagir com os outros. E nisso se baseia a democracia. Desde a Grécia clássica, os filósofos insistiam que uma discussão saudável sobre o bem comum exige que os cidadãos transcendam seus interesses privados para se converterem no que Aristóteles chamou de animais políticos.
Hoje, em política, ninguém quer transcender. Substituímos a família de políticos tradicionais por uma nova dinastia de políticos narcisistas como Berlusconi e Beppe Grillo na Itália ou Trump nos Estados Unidos. Sempre sofremos com líderes megalomaníacos. Mas desta vez padecemos nas democracias mais estabelecidas, as que indicam o caminho para o resto. E por vontade própria. Em maior ou menor grau, nos identificamos com sua egolatria palhaça. Esses políticos exalam o narcisismo moral que, de acordo com Roger Simon, definiria o nosso tempo. Ou seja, a sensação de que o que nos faz bem é o que nós acreditamos. O que gritamos aos quatro ventos. Não o que fazemos.
Até certo ponto isso é um processo inevitável. O devir do mundo nos tornou mais egocêntricos. Pertencemos aos primeiros grupos na história da humanidade dos quais não se espera que sacrifiquem a vida por Deus ou pela pátria. O Estado de bem-estar, com todas as suas deficiências, garante aos cidadãos uma série de serviços que, como apontou Habermas há muito tempo, clientilizaram o conceito de cidadania. Sentimo-nos mais consumidores do que acionistas do Estado.
Socialmente, há muitos sinais de esperança. Somos tolerantes e solidários. Fazemo-nos voluntários de causas nobres. E proliferam os códigos éticos e deontológicos que guiam nossa vida cotidiana profissional.
Mas politicamente negligenciamos as virtudes cívicas. Não sentimos obrigações para com a comunidade. Deixamos tudo a cargo das instituições. E, como estamos vendo com Trump, nem os pesos e contrapesos da democracia mais estável do mundo parecem suficientes para deter uma política desprovida de civilidade.
Não é irreversível. Porque, em grande parte, o desprezo da cultura cívica é resultado dos relatos políticos dominantes nas últimas décadas. De direita e de esquerda. Todos contribuíram para diluir o espírito público. Por um lado, a direita ocidental se desprendeu dos freios democrata-cristãos e conservadores que continham a busca do puro interesse individual. Hoje vale tudo se beneficia você ou o seu país. A chanceler Angela Merkel é a última resistente, leal às suas fortes convicções morais. Mas é assediada em todas as frentes, externas e internas.
A esquerda não está livre de culpa. Desde sua torre de vigia moral, atacou o ultraliberalismo sem coração da direita. Mas sua crítica, escrupulosa e cômoda, não vem acompanhada pela sempre incômoda demanda de cultura cívica. A esquerda não reivindicou uma maior responsabilidade aos cidadãos para enfrentar os grandes desafios coletivos e as inescusáveis reformas do Estado de bem-estar. Focalizou em pedir maior participação na tomada de decisões. Dê-nos poder, mas não nos peça demasiados esforços. Uma pena, porque o princípio da responsabilidade pessoal e da obrigação social não é uma invenção socioliberal da terceira via, como muitos denunciam de maneira interesseira. Pelo contrário, está no próprio coração do pensamento socialista desde sua origem.
A esquerda abandonou a promoção do caráter cívico. De alguma forma perversa, a esquerda inverteu o sonho de uma de suas referências, Martin Luther King. O ativista dos direitos civis desejava uma nação em que os cidadãos fossem julgados pelo conteúdo do seu caráter e não por outras características estáticas, como a cor da pele. Mas a palavra “caráter” provoca alergia a uma esquerda contemporânea que prefere que os bens e as políticas sejam distribuídos em função das características passivas dos cidadãos.
Os eleitores são clientes sensíveis que precisam ser satisfeitos. Na política para narcisos só há espaço para vendedores divertidos. Não para pregadores como King ou Merkel.
Victor Lapuente Giné
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