Dois dias atrás, o Departamento do Trabalho americano divulgou a última leva de dados compilada ainda antes da posse de Donald Trump. A taxa de desemprego de 4,8% que Barack Obama entrega ao sucessor deve ter soado quase incômoda, por difícil de ser melhorada a canetadas.
Trump elegeu-se garantindo criar 25 milhões de empregos novos em dez anos, enquanto Obama criara 12 milhões e George W. Bush não ultrapassara o 1,3 milhão.
Então das duas uma: ou o 45º ocupante do cargo põe o colosso produtivo dos Estados Unidos em marcha acelerada, ou ele fabrica numerologias.
Seis meses atrás, durante a feroz campanha eleitoral, Trump reagiu assim à divulgação da taxa de desemprego, que era de 5%: “Esse número é um dos maiores embustes da história política americana. É provável que o número real seja 28%, ou 29%, chegue a 35%. Na verdade, ainda recentemente me falaram em 42%”.
Disparate de candidato? Há quem não queira pagar para ver.
Mark Twain já ensinou o quanto fatos são teimosos enquanto estatísticas são maleáveis.
É comum que por trás dos discursos de transição colaborativa entre um governo vitorioso nas urnas e o que foi enxotado do poder ocorra um desfile de frustrações pessoais, decepções ideológicas, medo da mudança, críticas por antecipação. Muito conspira contra uma entrega sem solavancos da máquina burocrática que faz funcionar um país.
No caso da equipe recém-empossada de Trump, contudo, a desconfiança é mais do que epidérmica. Já porque levantamento divulgado pela publicação “The Hill”, bíblia dos viciados em política de Washington, 95% das doações de campanha feitas em 2016 por funcionários dos 14 ministérios foram para a democrata Hillary Clinton.
Ainda assim, surpreende o surgimento de uma espécie de “quinta coluna” no interior de setores da administração pública dos Estados Unidos. A oposição mais vocal brotou dentro do Departamento de Estado, onde Hillary reinou entre 2009 a 2013. Um manifesto contra o polêmico decreto de Trump que suspendeu a imigração de refugiados foi assinado por mais de mil funcionários daquele ministério.
Nas áreas de coleta e publicação de material estatístico, censo e banco de dados a preocupação é com o futuro do seu bem maior: a preservação dos fatos.
Reportagem do “Washington Post” relata a multiplicação de fóruns e workshops para funcionários públicos que buscam aconselhamento jurídico sobre desobediência civil.
Também lista a preocupação de cientistas e ambientalistas com guinadas irreversíveis nas respectivas áreas. Um exemplo de ativismo explícito citado é a “página de resistência” @viralCDC, criada por um imunologista egresso do Centro de Controle e Prevenção de Doenças para a postagem de informações sobre vacinas e saúde pública. Ele teme que dados possam vir a ser omitidos do site oficial.
Operações-tartaruga em alguns departamentos, alerta sobre cortes no financiamento de séries estatísticas voltadas para questões sociais, vigília quanto à interpretação ou alteração de metodologia para a coleta de dados, dúvidas sobre a futura divulgação de pesquisas na íntegra — a desconfiança em relação às formas do governo Trump poder falsear a realidade são múltiplas.
Houve quem tomasse providências bem antes de o republicano topetudo chegar ao Salão Oval, revogar mais de 60 mil vistos de imigrantes, banir o ingresso temporário de 134 milhões de cidadãos de seis países e ter vazados dois de seus telefonemas alfa-macho da Casa Branca — um deles para o primeiro-ministro da universalmente simpática Austrália.
Brewster Kahle, 56 anos, é um engenheiro de computação formado pelo Massachusetts Institute of Technology. É advogado militante do direito universal ao conhecimento e bibliotecário digital. É, sobretudo, o fundador do Internet Archive, uma das maiores bibliotecas digitais do mundo, que engloba a Wayback Machine, onde estão preservados sites e páginas antigos que seus donos ou governos já deletaram.
Nos Estados Unidos, a cada término de mandato, tudo o que estava armazenado no endereço WhiteHouse.gov desaparece automaticamente, e o site readquire vida nova sob nova direção, enquanto os registros oficiais do governo anterior passam a ser disponibilizados nos anais do National Archives — com restrições e após o habitual processo de armazenamento.
Graças a um dos braços da biblioteca montada por Brewster, o End of Term Archive (arquivo Fim de Mandato), tudo já está lá, disponível, nas suas páginas e bancos de dados originais, sem poder ser apagado, adulterado, corrigido. O mesmo vale para o conteúdo total do Arquive.org.
Trata-se de um tesouro incalculável. E, a juízo de seu criador, talvez ameaçado. Por isso, Brewster e um exército de colaboradores internacionais tratou de organizar o acesso seguro e permanente do Internet Archive também a partir do Canadá, país mais acolhedor para bibliotecas digitais.
Em longa entrevista à jornalista Amy Goodman, do site “Democracy Now”, onde explica a complexidade desse refúgio que construiu para a História, Brewster lembra que bibliotecas como a de Alexandria costumam ser incendiadas, e por governos, para cem anos depois alguém se arrepender. E acrescenta: “Promessas de campanha e políticas atuais podem ser mudadas por quem controla o website do momento, pois quem controla o presente controla o passado”.
De fato, não fosse a Wayback Machine montada pelo engenheiro, não seria mais possível ver o site original da campanha legislativa de 2001 do atual vice presidente Mike Pence, na qual se lê que “O Congresso deve se opor a todo esforço em reconhecer homossexuais como minoria discreta e insular com direito à proteção das leis antidiscriminatórias...”
Brewster concorda com George Orwell que quem controla o presente também controla o futuro.
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