terça-feira, 23 de setembro de 2025

Da fixação infantil ao gozo contemporâneo

I

Um dos jargões mais marcantes para os millenials do Brasil é “Oh vida, oh céus, oh azar”. Assim se lamentava a hiena que forjou milhões de infâncias hoje adultizadas e feridas. Essa suposta dor encenada no desenho animado não pertencia somente à minha geração: o coitadismo sempre existiu, o vitimismo sempre existirá e o seu trabalho consiste em trocar de roupa. Aquiles se entregou ao próprio sofrimento e se negou a lutar, mesmo sabendo que os companheiros de batalha sofriam na carne uma Ilíada particular, morrendo um a um. Motivo? A perda da escrava Briseida. Raskólnikov matou a agiota que, para ele, representava a ponta mais visível da opressão que sofria, ampliando a barbárie ao sacrificar também a irmã da prestamista. A justificativa do protagonista para as machadadas assassinas está na superioridade que ele, equiparando-se a Napoleão, fantasiava em si mesmo e que o habilitaria para ultrapassar as leis e a moral (soa familiar?). Numa espécie de declaração judicial novelada, Humbert Humbert confessou a sua paixão por Lolita e narrou a própria pedofilia com tamanha autocondescendência que nós, empapados de machismo, chegamos a sentir que a criança realmente seduzia o seu tutor – pobre homem. Bentinho justificava os seus surtos de ciúme contra Capitu com base em sinais insípidos e ambíguos, mas, segundo ele, suficientes para comprovar uma traição. Essa certeza foi fervorosa ao ponto de ele não conseguir se relacionar com o filho que, tinha certeza, também era fruto da suposta deslealdade.


Entre estes e outros personagens há um elemento comum: todos esses homens – não por coincidência – justificam o seu furor homicida, a sua derrota, a sua perversidade ou a sua fraqueza não como resultado da própria intransigência, irresponsabilidade, cegueira ou sede de poder, mas sim como efeito de algo mobilizado fora do Eu. E assim se forjou o vitimismo no Ocidente: um mecanismo psíquico que, no plano coletivo, funcionou e funciona como um lastro da cultura, uma máquina da história, um estado ético e estético que formou homens e mulheres – na ficção e fora dela.

II

A postura vitimista nada mais é do que uma fixação infantil: numa determinada vivência inaugural, a criança sente que foi ferida injustamente e está certa de que tem direito a uma retratação do Outro (eis o que Bentinho repetiu ao longo da vida). Mas a culpa dessa outridade não existe necessariamente e, portanto, esse pedido de desculpas não chegará. Por isso, a criança se ressente contra o mundo e cresce presa à fantasia de matá-lo. Ao longo da existência, essa posição pode se consolidar numa certa interpretação da realidade cujo sintoma é a repetição infinita das sensações de inferioridade e injustiça. A cristalização da autopiedade na vida adulta só é possível porque, enquanto mecanismo de defesa, o vitimismo tem uma arquitetura objetal: depende do outro para se sustentar. O sujeito assim neurotizado acredita não ter a culpa de nada, mas os objetos externos, sim, são seus réus.

Considerando que todo mecanismo de defesa supõe um ganho secundário, o gozo da vítima está na possibilidade de agenciar o falso acolhimento (também objetal), a não responsabilização, a negação da própria incapacidade e – principalmente – a confirmação do sentimento de injustiça. Humbert Humbert o fez com leitores e leitoras ao construir a narrativa de tal maneira a ser percebido como o vulnerável e, portanto, vitimado da história (quando, na realidade, ao contrário da imagem de femme fatale que ele mesmo imprimiu na criança, ela era não a femme, mas a vítima fatal, e ele o algoz calculista e sem escrúpulos); Bentinho também empreendeu essa tentativa ao juntar uma série de ambiguidades que, em conjunto, desenhavam Capitu como traidora. E, para si mesmo, o conjunto dessas “provas” funcionava como uma espécie de consolo. Na Ilíada, são muitas as cenas em que, indireta e implicitamente, Aquiles sentia prazer em ser percebido como homem-sofredor-injustiçado-desonrado diante dos compatriotas que, por obediência, respeitaram a sua retirada suja de birra. Se observamos as representações do vitimismo na literatura da vida contemporânea, temos, por exemplo, as figuras do escritor que fala sobre a impossibilidade da escrita, os dramas da vida pequeno-burguesa, o vira-latismo intelectual ou as lamentações de uma branquitude esquizofrênica que perdeu o seu lugar de privilégio. Mais especificamente no campo das escritas de si, linha editorial em franca primavera, poucas vozes conseguem enunciar a própria história sem apelar para a vitimização. Esse gozo é irresistível, embora na literatura poucas e poucos consigam evitar a sua fatalidade.

III

Considerando que, como a psicanálise bem demonstra, tudo se repete no chão da cultura, os vitimismos ressurgem, hoje, com uma roupagem assustadora: no horizonte do turbotecnomachonazifascimo proposto por Márca Tiburi, pessoas postam o braço agulhado na cama da UTI, abrem uma live para chorar por um problema particular, publicam selfies em lágrimas, culpam (e às vezes matam) a mulher que decidiu romper a relação opressora, se posicionam como vítimas dos signos, do destino, de marte retrógrado – mas nunca de suas próprias ações. Uma observação: respeito e admiro todas as formas de crer (eu mesmo já estive e sigo adepto a muitas delas). O recorte aqui posto diz respeito à ação neurótica – automática e repetitiva – de manipular a montagem dos fatores externos para justificar um problema que poderia ser resolvido com mais responsabilidade e implicação pessoal. Atualizando a postura de Bentinho ou Humbert Humbert, muitas pessoas buscam ouvintes prontos para acreditar na versão enviesada de quem conta. Por sorte, não é difícil perceber que quem fala manipula e distorce em função de motivações conscientes e inconscientes. O gozo narcísico do vitimismo está no ombro amigo do mundo, mas também na facilidade da não confrontação com o próprio contraditório – e com a ação transformadora que ele exige.

No contexto coletivo, que é sempre político, a mobilização do imaginário coitadista está em todos os grupos do espectro, em maior ou menor intensidade. Para nós que estamos do lado de cá da tela, acompanhando os movimentos de aproximação e deriva entre partidos, só nos cabe a pergunta que também devemos aplicar à leitura literária: quem diz o quê e com qual intenção? A postura vitimista de Bolsonaro encontra símiles em Trump, Milei, Bukele, Abascal, Le Pen, Orbán e tantos outros que recitam o mesmo roteiro e interpretam uma mesma cena: manipular a lei democrática a favor de interesses antidemocráticos. É o puro cinismo que não se viu, por exemplo, quando prenderam Lula. Embora movido por uma paixão autocomplacente vez ou outra, ele não enviou os seus filhos à Rússia ou à China para articular chantagens econômicas contra o Brasil. No caso de Dilma Rousseff, pese a sua tão criticada inabilidade para o diálogo, o coitadismo de Estado não foi em nenhum momento a postura da ex-Presidenta. O que ela fez não foi falar de si, do que sofreu ou do quanto a política foi e é injusta com ela. Sem personalizar as ações, discursos e debates, Dilma optou por chamar a atenção para as manchas na História brasileira, para a gravidade do retorno a uma autocracia militar, para o perigo da saúde democrática. Quando alguém disser que políticos são todos iguais, é importante lembrar o grau de vitimismo agenciado e enunciado (ou não) por cada um.

Infelizmente, o capital político se fortalece com a mobilização bem-intencionada dos afetos das massas e com a confusão – arquitetada – entre vítima e herói. Daí surgem os falsos mártires. Enquanto a dinâmica do vitimismo individual tem como base a inferioridade não elaborada e a consequente queixa projetiva, no campo coletivo as figuras políticas se entendem superiores, mas aproveitam as facadas na barriga e os tiros na orelha para fingir uma fragilidade heroica. Com isso, alcançam os afetos individuais para, no final, transformá-los em votos.

Se a vitimização produzisse energia, seríamos um planeta autossuficiente para sempre. Mas não. Pelo contrário, o que o coitadismo faz é sugar o vigor de todos nós e, no campo coletivo, esculpir messias “pobrezinhos”.

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