sexta-feira, 23 de outubro de 2020

A vacina dos sem-banho

Um dos candidatos a prefeito da cidade de São Paulo comentou com os jornalistas, após um encontro na Associação Comercial, que a suposição de que os moradores de rua seriam os mais atingidos pela pandemia não se confirmou.

Ele arriscou uma hipótese para explicar outra e duvidosa hipótese: “Talvez eles sejam mais resistentes do que a gente, porque eles convivem o tempo todo nas ruas, não têm como tomar banho todos os dias”. A fala não tem uma evidência médica. Mas tem uma evidência sociológica de como é o mundo do candidato: o da sociedade dividida entre “a gente” e “eles”, os que tomam banho e os que não o tomam.

Sua esdrúxula explicação lembrou-me de outro caso, de anos atrás. Eu estava numa reunião em colégio católico em que se debatia pobreza e exclusão social. Uma das senhoras, de uns 60 anos, tomou a palavra, virou-se para o único negro presente, um senhor de idade, e disse-lhe: “Vocês, pobres, precisam cuidar da limpeza, varrer a casa, manter a casa limpa”. Era sua solução para o problema da pobreza.



Muito paciente, aquele senhor lhe respondeu: “Minha senhora, para limpar minha casa eu preciso ter uma casa”. Ela, provavelmente, não entendeu que, nas questões sociais, há o que vem antes e o que vem depois, o principal e o secundário.

Como no preconceito daquela senhora de classe média, o senso comum do candidato paulistano é mera hipótese, sem fundamento científico. Embora na ciência não seja raro que o bom senso do pesquisador faça descobertas inesperadas, no terreno do improvável. Mas isso só ocorre quando o senso comum do cientista não é tão comum assim. Ele pode interpretar o que significam coincidências repetidas em questões como a da saúde pública.

A descoberta da vacina da varíola decorreu da constatação de que as ordenhadeiras de vacas, na Inglaterra, não contraíam varíola. Edward Jenner (1749-1823), o pesquisador inglês que criaria a vacina, percebeu o alcance científico do fato porque era um cientista. As pústulas do úbere das vacas continham o pus vacínico. Elas e suas ordenhadeiras eram agentes de um experimento científico casual.

A questão política na fala do candidato é a de saber por que escolheu ele justamente a hipótese da falta de banho para explicar a suposta imunidade dos moradores de rua à covid-19. Poderia haver outras, como a de que a alimentação a que têm acesso precário essas vítimas do descarte social talvez seja insuficiente e pobre. Não conteria certos alimentos que aumentariam sua vulnerabilidade à doença. Ou que não são exagerados consumidores de remédios, como outros muitos. Itens do farmacismo do exagero talvez os tornasse mais vulneráveis. Estou apenas derivando suposições a partir do mesmo senso comum que sustenta a hipótese do candidato de que menos banho é igual a menos covid-19. É tudo igualmente falso.

O que a resposta escolhida pelo candidato revela, politicamente, é que ela se funda em disseminado e arraigado preconceito contra pobre. O de que pobre não toma banho. Isso é falso. Em observações que fiz numa das grandes favelas de São Paulo, o cuidado com o banho e a apresentação pessoal contrasta com as condições notoriamente adversas dos minúsculos barracos. Seus moradores dependem de carregar água de longe para o banho de caneca ou de bacia. Banho é banho. Os barracos e seus moradores estão sempre muito limpos.

Vi algo semelhante num pavilhão da Casa de Detenção, pouco antes de ser demolido. Os presos, notoriamente desassistidos, com o que sabiam criavam chuveiros elétricos com vasilhas de margarina e gambiarras. Era o senso comum criativo dos desvalidos em contraste com o dos mandões que os abandonavam.

Moradores de rua da cidade de São Paulo e, provavelmente, em outros lugares têm estratégias para o banho e a limpeza. Alguns usam os banheiros dos cemitérios. Um deles me explicou que são mais limpos do que os poucos banheiros públicos.

Outros têm entendimento com donos de bares para usar o banheiro do estabelecimento. Cuidam para deixá-lo limpo e manter o crédito moral desse acesso. Muitos se lavam e lavam suas roupas no espelho d’água da praça da Sé. Depois, penduram as roupas num dos respiradouros do metrô, ali mesmo, para secá-las rapidamente ao ar da poderosa ventilação que sai de lá de dentro.

Essa criatividade é própria do que o antropólogo Oscar Lewis (1914-1970) definiu como cultura da pobreza.

Se o candidato conhecesse a cidade que quer governar, conheceria a cultura de rua dos que nela moram, suas regras, sua concepção de ordem. Há mais ordem social entre os pobres das ruas do que nos recintos do poder.

O mesmo vale para os outros candidatos. Nenhum deles abriu o bico para assinalar o preconceito social óbvio na afirmação do seu colega de disputa.

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