segunda-feira, 21 de julho de 2025

A crônica de um naufrágio anunciado

De tempos em tempos, a realidade nos oferece cenas tão emblemáticas que só a literatura, com seu panteão de personagens, parece ser capaz de explicá-la. E esse é o caso do Capitão Ahab, protagonista do romance Moby Dick. Na obra, publicada por Herman Melville em 1851, Ahab encarna a figura do líder obcecado por um inimigo simbólico — a baleia branca — cujo enfrentamento não é racional, mas movido por ressentimentos e desejos de vingança. Na sua cruzada pessoal, o personagem ignora alertas em sacrifício do pragmatismo e conduz a tripulação do navio Pequod ao naufrágio.

O arquétipo literário proposto por Melville pode nos ajudar a explicar o período de incertezas políticas que vivenciamos hoje, notadamente a situação do bolsonarismo no Brasil e do trumpismo nos EUA, com os quais Ahab compartilha traços de irracionalidade e impulsividade autodestrutiva, para dizer o mínimo. Tanto aqui quanto lá, tais grupos têm mantido uma lógica de confronto contínuo contra inimigos difusos — o “sistema”, o Judiciário, a imprensa, o “globalismo”, etc. —, numa estratégia esquizofrênica que dispensa a construção de alternativas viáveis para a própria sobrevivência política e insiste na mobilização pelo ressentimento. E o episódio da imposição de tarifas comerciais por parte do governo americano sobre produtos brasileiros oferece um exemplo concreto disso.

Conforme visto no dia 9, Donald Trump anunciou tarifas de 50% sobre todas as exportações do Brasil aos EUA a partir de 1º de agosto de 2025. A decisão, comunicada por meio de uma carta pessoal endereçada ao presidente Lula (PT), chocou os analistas e foi classificada como punitiva, ultrapassando qualquer expectativa do mercado. O Brasil, aliás, foi tratado de forma desproporcional em relação a outros países taxados, como Argélia, Iraque, Líbia e Sri Lanka (30%), Brunei e Moldávia (25%) e Filipinas (20%). Enquanto o teor da carta escancarou a motivação política deste movimento, ao citar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), criticar o Supremo Tribunal Federal (STF) e avançar sobre a manutenção da “liberdade de expressão” e a regulação das plataformas digitais.


Ainda que não seja a primeira vez que Washington tenha utilizado tal estratégia enquanto instrumento geopolítico, a situação revela uma inversão do espírito que norteou a criação da ordem comercial liberal pós-Segunda Guerra — uma ordem que, como lembra o Nobel Paul Krugman, via no comércio internacional não apenas ganhos econômicos, mas uma ferramenta de promoção da paz e de fortalecimento da democracia. Da mesma forma, torna-se evidente a falta de uma lógica econômica por trás dessas medidas, considerando que os americanos mantêm um superávit na balança comercial com o nosso país, o que inviabiliza justificativas para a adoção de tarifas dessa natureza.

De acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a relação comercial entre Brasil e EUA é deficitária para o Estado brasileiro desde 2009. Segundo o presidente Lula, em entrevista à BBC, o déficit acumulado dos últimos 15 anos já ultrapassa US$400 bilhões. Portanto, as “graves injustiças do regime atual”, nos termos da carta enviada por Trump, são evidentes inverdades para quem lê os números — e verdadeiras inevidências para quem acredita, talvez demais, em bravatas tarifárias.

Além disso, apenas para título de ilustração, cerca de 30% do café e 50% do suco de laranja importados pelos EUA vêm do Brasil, conforme dados divulgados pela Reuters. O que significa que, sob à sombra da diminuição no fluxo de venda, os roasters norte-americanos não conseguiriam absorver o aumento dos custos internos. Já no campo do alumínio e do aço, segundo a Intellinews, uma tarifa de 25% sobre as exportações brasileiras seria responsável por uma queda estimada de 11% na venda desses insumos, o que, em termos de prejuízo, bateria a casa dos US$1,5 bilhão.

No entanto, um detalhe curioso — para não dizer irônico — é que os setores atingidos no Brasil estão sediados justamente em redutos bolsonaristas: Minas Gerais e São Paulo. Estados governados por figuras próximas ao ex-presidente — Romeu Zema (Novo) e Tarcísio de Freitas (Republicanos) —, e que agora poderão experimentar interrupções na produção, demissões em massa e perda de arrecadação. Aliás, o possível impacto inflacionário, causado pelas pressões nas cadeias de transmissão, só não é mais instigante do que o papel de Jair Bolsonaro nessa história. Isso porque, longe de ser protagonista, o ex-presidente tornou-se um peão mal posicionado no tabuleiro geopolítico de Washington, algo claro no final da carta de Trump, quando o republicado diz que:

“[…] Se o senhor [Lula] desejar abrir seus mercados comerciais, até agora fechados, para os Estados Unidos e eliminar suas tarifas, políticas não tarifárias e barreiras comerciais, nós poderemos, talvez, considerar um ajuste nesta carta […] O senhor nunca ficará decepcionado com os Estados Unidos da América […]”. 

Em outras palavras, embora seja tentador acreditar na “reciprocidade amistosa” da relação Trump-Jair, conforme o bolsonarismo afirma incessantemente, a Casa Branca instrumentaliza Bolsonaro como pretexto para minar a coesão dos BRICS e enfraquecer as posições da China na América do Sul — esses sim, os reais alvos dos EUA. Não se pode ignorar que a recente carta foi divulgada apenas três dias após o encontro do grupo no Rio de Janeiro — evento que, entre outros temas sensíveis, incluiu a proposta de um sistema monetário mais autônomo em relação ao dólar, provocando reações imediatas. No dia 06 de julho, Trump ameaçou impor tarifas adicionais de 10% a qualquer país que se alinhasse “às políticas ‘antiamericanas’ dos BRICS”.

Para além das tensões diplomáticas, as posturas reativas da Casa Branca refletem as transformações do cenário internacional. Hoje o PIB dos BRICS já superou o do G7, por exemplo. Além disso, o populismo tarifário de manual, por assim dizer, não apenas testa os limites da paciência brasileira, como também busca intimidar os rivais norte-americanos. No entanto, esta guerra comercial pode se transformar num famoso “tiro no pé” ao produzir efeitos inversos aos esperados por Washington. Em visita recente ao Palácio da Alvorada, o Primeiro-Ministro indiano, Narendra Modi, foi recebido por Lula em uma reunião que selou parcerias estratégicas nas áreas de ciência e tecnologia, agricultura e combate ao terrorismo. Após o encontro, o presidente brasileiro reforçou o posicionamento do bloco: os BRICS não aceitam intromissões de países que se recusam a reconhecer a soberania de seus membros.

Logo, diante desse cenário, perguntamos: o que exatamente impediria os integrantes do grupo de se aproximarem ainda mais? Que garantias têm os EUA de que sua estratégia não acabará, na prática, incentivando o fortalecimento interno do bloco, inclusive no plano econômico, por meio de mecanismos de proteção mútua?

Não há dúvidas de que os EUA buscam utilizar a figura do bolsonarismo enquanto cortina de fumaça, mirando em quem realmente os incomoda: Pequim. Porém, ao fazer isso, Trump acaba por fragilizar economias aliadas e dar margem para a reconfiguração de discursos no campo adversário.

Lula, que até então vinha adotando um comportamento conciliador no plano internacional, encontra agora uma oportunidade interna: se posicionar como defensor da soberania diante de agressões externas, e articular um — já conhecido e eficaz — discurso de “unidade nacional” frente ao “inimigo estrangeiro”. Capitalizar a situação sobre um desgaste provocado por forças que, paradoxalmente, se dizem defensoras do Brasil, tende a render ganhos satisfatórios na arena doméstica, impulsionando a popularidade atual do presidente. Afinal, quem diria que Bolsonaro, mesmo temporariamente, reuniria do mesmo lado do “cabo de guerra” figuras de distintas pigmentações ideológicas, desde Guilherme Boulos (PSOL) e Luiz Felipe d’Ávila (Novo) ao Editorial do Estadão (10/07)?

Em entrevista à Record, o presidente Lula destacou que “brincar” com a taxação internacional só levaria a um jogo de retaliações sucessivas, um processo exponencial em que um aumento de 50% seria prontamente respondido com outro de igual magnitude. Um duelo que não termina por exaustão, quando um dos lados resolve, politicamente, recuar. E até aqui, não foi o Brasil quem piscou. Ao contrário do governo japonês, que, quando sujeito à mesma pressão protecionista, sinalizou rapidamente o interesse em renegociar, o Palácio do Planalto parece disposto a não ser o primeiro a ceder.

O tom adotado pelo governo deixa isso claro. Segundo o Ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, o Brasil deve ampliar sua presença em mercados alternativos, buscando reduzir a dependência de exportações aos EUA. O Ministério das Relações Exteriores, por sua vez, reforçou a postura ao passo que optou por devolver à Casa Branca a carta enviada por Trump, apontando seu tom ofensivo e listando as imprecisões factuais do discurso presidencial americano.

Trata-se de uma questão de tempo até que os representantes das federações agroindustriais brasileiras abandonem o silêncio e se juntem ao coro. Isso porque, no fim das contas, a situação das tarifas demonstrou que o nacionalismo performático do séquito bolsonarista não apenas prejudica o país, mas os interesses econômicos de quem antes apoiou Bolsonaro com poucas ressalvas. Mais do que isso, semelhante à tragédia de Ahab em Moby Dick, não parece haver ao lado do bolsonarismo a busca por vencer uma disputa, mas a necessidade de perpetuar uma luta como forma de manter a coesão do seu rebanho político.

Ou seja, o ex-presidente não está voltado para a construção de um projeto viável — nem mesmo para as elites —, mas sim para a sustentação de uma “guerra eterna” contra a “baleia branca”, onde a derrota importa menos do que o confronto. A ruína é uma consequência previsível, mas secundária.

À medida que se torna evidente a ausência de coerência entre as tarifas de 50% impostas pelos EUA e a realidade econômica — marcada pela integração de cadeias produtivas —, e ao passo que os mercados brasileiro e norte-americano começam a reagir, resta a pergunta: o que sobra para Donald Trump? Por enquanto, provavelmente, o velho e conhecido TACO (Trump Always Chickens Out). Afinal, duas semanas é tempo mais que suficiente para recuos — e não seria a primeira vez que o republicano voltaria atrás após bravatas desse tipo. E para o Brasil, o que sobra?

Embora o quadro não seja favorável, Brasília possui alguns trunfos, a começar pela capacidade de resiliência do Itamaraty em negociações bilaterais e institucionais. Sabemos que ações por violação de normas multilaterais na Organização Mundial do Comércio (OMC), buscando a restauração de cotas de aço e alumínio, por exemplo, podem parecer inócuas nesta altura do campeonato. Mas liderar esforços de diálogo em estruturas de governança pode ser uma boa alternativa, inclusive para justificar movimentos posteriores mais bruscos.

Acima de tudo, a diversificação de mercados visando o Leste e Sudeste Asiático, e a União Europeia, além do aprofundamento comercial intra-BRICS e o avanço de parcerias de infraestrutura e integração logística com a China nunca foi tão urgente. Em outras palavras, se o Governo agir com estratégia e cautela poderá transformar um choque adverso numa oportunidade histórica de reposicionamento do país no cenário global e, também, no fortalecimento de sua posição interna. Mas e quanto ao Bolsonaro? O que resta ao bolsonarismo?

Os paralelos com a jornada de Ahab, nessa situação, são pedagógicos e, da mesma forma que o destino do Capitão não foi resultante de uma força incontrolável — mas da decisão consciente de priorizar o conflito à sobrevivência coletiva —, ao bolsonarismo resta a mesma máxima que impera no romance de Melville: quando a irracionalidade substitui a razão, o naufrágio deixa de ser uma possibilidade e passa a ser apenas uma questão de tempo.

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