quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Trump não é o Kissinger do Médio Oriente

Dois anos após o bárbaro ataque de 7 de outubro de 2023, a guerra em Gaza deixou de ser apenas um conflito armado. Tornou-se o espelho de uma crise moral e diplomática que expõe Israel a uma solidão cada vez mais visível. Os números falam por si: mais de 65 mil palestinos mortos, dezenas de reféns ainda em cativeiro, uma devastação que já não se mede apenas em vidas perdidas, mas também numa legitimidade em erosão contínua.

Benjamin Netanyahu, que outrora se apresentava como guardião de Israel, é hoje o rosto de uma barbárie marcada por crimes de guerra. Enquanto países como o Reino Unido, França, Canadá e Austrália – insuspeitos de qualquer simpatia pelo Hamas – reconheceram formalmente o Estado palestino, na ONU o primeiro-ministro discursava para uma sala que se esvaziava em protesto. A fotografia é inequívoca: Israel já não fala aos seus aliados, mas às paredes de auditórios desertos, reflexo de um isolamento que se adensa a cada semana.


O regresso de Donald Trump à Casa Branca acrescenta uma ironia cruel a esta paisagem. O Presidente dos Estados Unidos, reciclado como mediador improvável, recebe Netanyahu em Washington com um plano de vinte pontos que mistura pragmatismo e espetáculo. O objetivo declarado é transformar a devastação em Gaza numa oportunidade de paz, abrindo a porta à normalização das relações de Israel com a Arábia Saudita, o Líbano, a Síria e até, possivelmente, o Iraque. A arquitetura desta visão não nasceu em Washington, mas no círculo de Jared Kushner, Steve Wittkoff e Tony Blair, que procuram redesenhar o “Grande Médio Oriente” e transformá-lo num mercado financeiro ou imobiliário.

Trump redesenha assim, na prática, os Acordos de Abraão, constrói uma coligação com vários países árabes e muçulmanos – incluindo a Turquia, que historicamente sempre insistiu em que o Hamas não é uma organização terrorista – e encurrala o Grupo. Pressiona contra anexações, promete a libertação de reféns e corteja aliados árabes. A sua aposta é clara: apresentar-se como o único capaz de impor um acordo, tratando a Palestina como um negócio a fechar, sem disfarçar a indiferença moral que o caracteriza.

Mas as dificuldades são evidentes: um plano ambicioso, mas proposto no meio de uma violência e de uma desconfiança sem precedentes. Para funcionar, exigirá um cessar-fogo imediato, a retirada faseada das tropas israelitas, a libertação simultânea de reféns e prisioneiros e a reconstrução de Gaza sob supervisão internacional. No papel, a Faixa passaria para uma administração tutelada por uma força estrangeira, com participação árabe e um papel residual da Autoridade Palestina, enquanto um “Conselho da Paz” exerceria de fato a sua administração.

Netanyahu encenou na ONU a sua intransigência, comparando a criação de um Estado palestino a entregar território à Al-Qaeda depois do 11 de setembro. Falou em “acabar o trabalho” em Gaza, no seu habitual tom de confronto. Mas não convenceu ninguém que não estivesse já convencido. As famílias dos reféns protestaram, os delegados abandonaram a sala. A guerra, que começou como resposta a um massacre, transformou-se no álibi de uma fuga para a frente, minando os interesses estratégicos de Israel.

Daí a desconfiança perante a sua súbita vontade de negociar de boa-fé. Os obstáculos são de ordem política e existencial. Netanyahu resiste porque ceder significaria trair a coligação de colonos e ultranacionalistas que sustenta o seu poder. O Hamas resiste porque qualquer concessão seria vista como rendição. E no meio deste cinismo, muitos líderes proferem uma coisa em privado e outra em público. O plano de Washington, ainda que menos fantasioso do que a “Riviera de Gaza”, mantém ambiguidades profundas. Prevê zonas de segurança israelitas “por tempo indeterminado”, eleições palestinianas e uma Autoridade Palestina relegada a nota de rodapé. As condições mínimas para manter a possibilidade de um Estado palestino passam por uma retirada israelita real de Gaza e pela suspensão imediata da construção de colonatos na Cisjordânia. Sem isso, não será possível restaurar a confiança entre ambos.

Do lado árabe, a coligação delineada por Trump não é homogênea. O Qatar, a Turquia, o Egito e a Jordânia pressionam os líderes do Hamas, mas terão exigido limites claros à supervisão internacional e um calendário para a solução dos dois Estados, consagrada na Declaração de Nova Iorque, já recordada pela França e pela UE. Internamente, figuras como Benny Gantz veem uma oportunidade histórica, Yair Lapid oferece a Netanyahu uma rede de segurança, enquanto Bezalel Smotrich exige um futuro sem Autoridade Palestina. Todos sabem, porém, que sem acordo Israel ficará condenado a uma ocupação permanente em Gaza e a uma insurgência sem fim.

É inegável que as vitórias militares israelitas contra o Irã e o Hezbollah abriram um espaço sem precedentes para a integração regional. A queda do regime sírio pró-Irã, o fortalecimento do Líbano e do Iraque e até o debate interno em Teerã sobre os custos de apoiar “proxies” revelam uma transformação em curso. É este o momento que os arquitetos do plano querem converter numa vitória política, transformando os ganhos militares numa vitória diplomática.

Mas o futuro – e o histórico da região – não inspira otimismo. A curto prazo, a presença israelita em Gaza dificilmente terminará tão cedo e os colonos não abandonarão voluntariamente a Cisjordânia. A médio prazo, a provável consolidação do “Conselho da Paz” como instituição permanente, juntamente com o afastamento da Autoridade Palestina, tornará inviável a solução dos dois Estados, desligando os governos de Gaza e da Cisjordânia e enterrando de vez os Acordos de Oslo. A longo prazo, o Médio Oriente já nos ensinou que as profecias geopolíticas são perigosas. Mas apesar dos traços neocolonialistas do plano, ele parece ser neste momento a única via possível para pôr termo à violência.

A conferência de imprensa de Trump e Netanyahu revelou-se mais um monólogo surrealista do que um ato de diplomacia. Ainda assim, um cessar-fogo imediato, a entrada de ajuda humanitária e a promessa de fim do governo do Hamas são avanços necessários e bem-vindos. Porém, o papel da Autoridade Palestiniana – e com ele de um governo representativo dos palestinianos – permanece incerto, subordinado a um “Conselho de Paz” que, conhecendo o Presidente dos Estados Unidos, pode muito bem não passar de uma fachada para extrair benefícios para si e para o seu círculo mais próximo. Alguém acredita realmente que o Presidente dos Estados Unidos – ou o seu sucessor, sendo ele J.D. Vance – abdicaria do seu “mandato” sobre a região?

Gaza ainda corre o risco de se transformar na Riviera privada do Presidente dos Estados Unidos. Portanto, talvez ainda seja cedo para entronizar Trump como o Kissinger do Médio Oriente – ou encomendar o Prêmio Nobel da Paz.

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