quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Tempos sombrios e esperança

Observando o que acontece no mundo, afirmo que vivemos tempos sombrios. A escuridão, que cobre cada vez mais o mundo, tem diversos componentes, muitos deles desconexos, que, combinados, formam um véu cinzento que torna o futuro incerto.

As guerras mais destacadas pelos meios de comunicação ocorrem no Médio Oriente e na Europa. No entanto, o número de mortes por guerras e outros conflitos armados em África, bem como as mortes violentas decorrentes do crime organizado, muitas vezes superam as relatadas pelos meios de comunicação. As chamadas mortes indiretas, decorrentes desses conflitos, mas não causadas por ferimentos de guerra ou outros tipos de violência, agravam este panorama. As alterações climáticas, atribuídas por consenso científico à ação humana, estão a produzir consequências trágicas em todo o mundo. As nações mais ricas e poluidoras fingem não ter nada a ver com elas. A isso se soma a situação política de alguns países, que está a levar as democracias ao suicídio e ao surgimento de movimentos políticos extremistas.

Precisamos compreender a escuridão do mundo para agir, se quisermos que a humanidade tenha um futuro.

Hannah Arendt, em alguns dos seus livros, como Homens em tempos sombrios ou Origens do totalitarismo, analisa a escuridão dos tempos. Não vou aqui me alongar sobre a brilhante e profunda análise de Hannah, simplesmente copio duas frases que, segundo ela, caracterizam a escuridão do mundo:

• Dissolução da verdade factual: em ensaios como Verdade e política e Sobre a mentira na política, ela mostra como a manipulação sistemática dos fatos cria um clima de irrealidade. Quando tudo se torna opinião, extingue-se a luz que guia o julgamento comum.

• Massificação e solidão: em Origens do totalitarismo, a base do totalitarismo é a atomização: indivíduos isolados e desconectados tornam-se presas fáceis de ideologias que prometem um significado total. A solidão política abre caminho para o terror.

A obscuridade deste mundo não tem o mesmo tom em todos os lugares. Algumas características são semelhantes e estão a ser distribuídas, quase universalmente, pelas tecnologias de comunicação instantânea. Alguns tons sombrios – paradoxalmente – são evidentes. Sempre que fatos e dados se confundem com opiniões e ideologias, as relações humanas se obscurecem, a ciência se retrai e a política torna-se cinzenta. O isolamento e a atomização dos indivíduos impedem olhar para o outro e vê-lo como um ser humano, igual a quem o está a olhar. Os movimentos identitários, que muitas vezes defendem causas justas, contribuem, às vezes sem querer, para o isolamento, pois as relações só se dão dentro do mesmo círculo.

A realidade é obscurecida por ecossistemas de desinformação, hoje auxiliados pela inteligência artificial. A polarização e a política transformada em espetáculo substituem a deliberação civilizada. Muitas vezes, a indignação é recompensada, prevalecendo sobre a compreensão. E se somarmos o stress climático e a precariedade econômica para a grande maioria, produz-se um retrocesso político e a democracia sofre.

Hannah e eu somos otimistas/realistas diante da crescente escuridão do mundo. Vivendo em tempos “sombrios”, não estamos resignados a permanecer neste estado. A escuridão aumenta a necessidade e a oportunidade de acender luzes individuais e coletivas que possam colaborar para diminuir a penumbra, ou pelo menos iluminar um caminho. A responsabilidade de acendê-las não é transferível, é individual, e é dever de cada um que, insatisfeito, percebe a penumbra.

A título de exemplo, podemos mencionar algumas ações que iluminam:

• Cooperação científica e tecnológica.

• Jornalismo independente que apresenta fatos e dados que alimentam a luta contra opiniões.

• Criação de associações (e instituições) nas quais a palavra e a ação importam.

• Organização e participação em eventos em que o pensamento crítico seja fomentado.

• Ensino do método científico na infância para formar cidadãos que não aceitem argumentos de poder.

• Proteção do pluralismo.

Esses exemplos limitados podem estimular a imaginação coletiva, produzindo uma imensa quantidade de canais que iluminem a escuridão que nos rodeia.

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