sexta-feira, 27 de setembro de 2024

À volta da aparelhagem

Tenho reparado, quando falo com jovens sobre séries, que não estão habituados a discutir.

Dizem se gostam, perguntam se gostei, e fica-se por aí. Não atacam nem se defendem. Não se esforçam por me convencer. E, sobretudo, não suspendem as opiniões, para ver se resistem às críticas, ou à apologia das opiniões contrárias. Dizem que não gostam de discussões, que são inúteis, que não mudam nada. Gostam das diferenças, mas só para aceitá-las ou rejeitá-las. Não gostam de falar delas. Não gostam da concorrência de ideias. Acham que é uma competição e que a competição só convém aos mais fortes, aos vencedores.

Mas o problema não é ideológico: é material.


Quando eu era jovem, os aparelhos que nos davam música e cinema – o estéreo, o televisor – eram forçosamente partilhados. Era preciso aprender a partilhar: a discutir, a propor, a ouvir e a ser capaz de negociar.

E, por ser preciso negociar, era preciso ouvir e ver o que os outros queriam ver e ouvir. Esta experiência prestava-se a desenvolver um espírito crítico – nem que fosse para dizer mal das escolhas dos outros.

Hoje cada um tem tudo no celular. Já não é preciso partilhar. Já não é preciso chegar a compromissos. Já não é preciso gramar as escolhas dos outros. E assim nunca é necessário adquirir o hábito – e até o gosto – de discutir.

Perante este luxo individualista – em que as nossas playlists são confidenciais, protegidas do olhar crítico dos outros – os jovens compensam com experiências coletivas de zero escolhas e comunidade forçada, como concertos e outros espetáculos.

Ou um ou mil: falta-lhes a experiência de dois, ou três, ou quatro, à volta de um único aparelho, querendo decidir como se vai ocupá-lo. Pode haver um princípio de discussão por causa do televisor da sala – mas nunca é grave, porque quem perde retira-se e vê o que quer no telemóvel.

Valerá mais o que se ganhou ou o que se perdeu?
Miguel Esteves Cardoso

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