quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Não quero ouvir que o vírus vai nos ensinar uma lição

Um. Um bom amigo morreu no começo da epidemia. Era um narrador maravilhoso e o dono do café de Jerusalém Tmol Shilshom. Nesse café ocorreu o segundo encontro com a que hoje é minha esposa. Fomos ouvir David Grossman e depois, enquanto caminhávamos pela rua, ela me disse que seu sonho era se casar com um escritor (não tive outra escolha, portanto). Também ocorreu no mesmo café, meu primeiro encontro com o público como escritor. Cinco pessoas apareceram, mas graças à atenção e às perguntas formuladas pelo dono lembro como uma boa experiência. Com o passar dos anos, eu e o proprietário nos tornamos amigos. E tive o privilégio de aproveitar sua especial habilidade para entabular conversas íntimas. Conversas espirituais e honestas após as quais você se sente melhor. Morreu enquanto dormia. Ao que parece, de um ataque do coração. Ainda que, de fato, ele é uma das vítimas do coronavírus. De noite sentiu dores no peito, mas não quis ir ao hospital por medo do contágio. Era relativamente jovem. Tenho certeza de que, se não fosse pelo vírus, ainda estaria com vida. E eu ainda teria meu amigo. Quando soube de sua morte, tive um grande desejo de estar em companhia das pessoas que o amavam. Perguntei onde seria o funeral. Pela situação, me responderam, a cerimônia ocorreria na mais estrita intimidade familiar. Perguntei pela shivá. E me disseram que seria no domingo à noite pelo Zoom. Uma shivápor Zoom?, disse a minha mulher, chorando. Que terrível. Vírus odioso, acrescentei. Eu o odeio. Não estou disposto a escutar mais ninguém dizendo que o vírus “vai nos ensinar uma lição”, e que “vai nos fazer retornar a uma vida mais simples”. O vírus é um filho da puta.


Dois. Outro amigo meu é ator. Quando éramos adolescentes fomos a aulas de teatro juvenil e após duas lições ficou claro quem tinha talento e quem faria melhor procurando outro caminho para expressar suas angústias. Agora, meu amigo ator está sem trabalho. Pelo vírus já faz meio ano que os teatros estão fechados. Na semana passada, a caixa do supermercado não aceitou seu cartão de crédito. Ele me ligou para me contar que acaba de sair de uma entrevista na escola de sua filha para ocupar uma vaga de professor substituto. O que acontece é que a escola é das “democráticas”, de modo que na comissão de admissão de professores substitutos também há alunos. E na entrevista encontrou com duas amigas de suas filhas, garotas de 10 anos que frequentemente vão a sua casa para comer bolinhos e que lhe fizeram perguntas como: Por que você quer ser professor substituto?, e Quais são seus pontos fracos? E que ouviam suas respostas com rostos sérios. Rimos dessa história, em vez de começar a chorar.

Três. Saí com meu amigo músico para caminhar à uma da madrugada. Caminhamos pelos campos nos arredores da cidade e uivamos à Lua. Observei que quando ela não aparece, ele vai mais devagar. Eu sugiro que, enquanto a epidemia durar, ele faça shows ao vivo no Facebook. E me responde que não pode cantar sem ter o público diante dele. Simplesmente, não consegue. Eu lhe sugiro que aproveite o tempo livre para trabalhar em algo novo. Diz que tenta, mas tudo o que escreve lhe parece irrelevante, pertencente a um mundo que já não existe. Durante o passeio, sem perceber tiramos a máscara e, quando nos aproximamos da cidade, um carro de polícia para ao nosso lado e nos repreende pelo megafone: por que estão sem máscaras? Estamos praticando esporte. Isso é esporte?, caçoa o policial. Vão em passo de tartaruga. E qual é o problema? Responde, irritado, meu amigo. Quando era adolescente já tinha a tendência a se meter em confusões. O policial sai do carro, furioso. Digo sussurrando que cale a boca, mas ele grita para o policial: veja, veja, senhor policial, vamos colocar as máscaras. O policial se aproxima, cassetete nas mãos. Seu olhar diz que passaremos a noite no xadrez. Mas, então, algo muda em seu rosto. Para. Observa detalhadamente meu amigo e diz: um momento, você não é...? Meu amigo admite e o policial diz: adoro suas músicas. Vai lançar coisas novas? Está preparando algo? Meu amigo baixa a cabeça timidamente: sim, estou trabalhando em um novo disco. O policial diz, sensacional, sensacional, nesse momento precisamos de uma boa sacudida. Depois, volta a si, entra em seu papel, ergue um dedo de reprovação a ambos e lança um: cuidado ao não usar máscaras, hein? Há uma segunda onda!

Quatro. Meu amigo ginecologista está contente. Pela segunda onda do vírus menos mulheres vão ao hospital. Por medo do contágio, poucas mulheres se submetem a tratamentos de fertilidade. De repente, sua agenda está vazia e tem muito mais tempo para se dedicar a sua mulher e seus dois filhos. Descobre que, de fato, isso é o que mais gosta de fazer. Em uma das videoconferências me pede: me recomende um livro, por fim tenho tempo para ler. Eu sugiro "O Sol Desvelado", de Isaac Asimov, cuja ação ocorre em um planeta em que as pessoas se relacionam entre si somente através de telas por medo de se infectar com um vírus. Como aperitivo, li para ele uma frase do livro: “Na ausência de contato entre os seres humanos perdemos o interesse central pela vida, desaparecem muitos interesses intelectuais, em grande medida nos abandona a razão de viver. Ver não pode substituir o olhar”.

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