Mas há uma segunda e uma terceira hipótese. Se a sua resposta – segunda hipótese – foi só uma orientação da sua defesa, para atenuar a sua responsabilidade penal, o argumento pode ser tomado como um apelo para a redução de uma futura pena, a ser cumprida em estabelecimentos de recuperação de pessoas afetadas por psicoses graves, que passam a ser serial-killers da política democrática, quando são capazes de planejar as suas ações.
Há, todavia, uma terceira hipótese que, para mim, é mais provável: Jair Bolsonaro fez uma ironia e apenas debochou dos poderes de Estado naquele momento, na presença dos Policiais Federais que antes ele buscava cooptar “pelo alto”, para uma conspiração de natureza golpista e fascista. Deu, assim, prosseguimento ao desprezo ao Estado de Direito, que ele odeia por dois motivos fundamentais: primeiro, porque os maníacos depressivos não aceitam ser contrariados; segundo, porque os paranoicos detestam até as formas de tolerância que a democracia devota aos seus carrascos.
Antes de “fechar” a ideia do presente texto, uma base para reflexão: Jorge Luis Borges está para a literatura assim como Hans Kelsen está para o direito, pela adoração ao império das formas que ambos cultivavam, ainda que por condutos e canais diferentes. A subjetividade anárquica do gênio de Borges instaura a falsa “pureza” formal da literatura, cuja arquitetura central – nos seus textos – esgotava-se nas relações da palavra com a palavra, que saíam do seu estado anímico, vivas apenas nos nexos dados a elas, no texto que ali estava sendo escrito.
Independentemente do significado da sua linguagem corrente, Jorge Luis Borges forjava a literatura em “estado puro”, na qual a dialética das formas – como que por encanto – se separava dos movimentos reais da vida e só a palavra aparecia como soberana, para projetar os sentimentos mais recônditos do autor, para os quais a presença da vida real e dos sentimentos dos outros não importava: todos são pequenos demais, menos os ingleses da sua linhagem, para merecer um outro tipo de encantamento mais generoso.
Qual a analogia de Borges com Kelsen? Ela reside no cerne da teoria pura do direito de Hans Kelsen, antes da grande virada que deu, quando passou a reconhecer que o Estado nazista não era um Estado de direito, cuja eticidade e moralidade estariam, presumidamente, presentes dentro do seu sistema de normas, só porque este era coerente consigo mesmo. O nazismo seria, assim, para o último Kelsen, um sistema de poder sem direito e sem moral, que escravizava a sociedade pela força bruta, que o direito – ao mesmo tempo que regularizaria – travava e organizava pelo medo.
A subjetividade de Hans Kelsen, antes dessa virada, dava a estabilidade estática e burocrática ao direito, dizendo que ele é – como forma orgânica do Estado – a lógica despida da emoção que todos deveriam cultuar a partir da norma fundamental, que tanto pode vir de Deus como da sociedade. As formas de Hans Kelsen revestiam o direito de uma dignidade presumida pela coerência interna do sistema e as formas de Jorge Luis Borges davam beleza a sua literatura, “pura” de qualquer conceito político, pela harmonia que ligava as palavras dotadas de novos sentidos.
Por este caminho Hans Kelsen formava o conceito do “estatal”, de maneira aparentemente “científica”, onde as relações entre as palavras devem ser cientificamente resolvidas: elas adquiriam o seu significado como normas (compostas por palavras), não como o discurso da arte em Borges. Em Hans Kelsen as palavras “superiores” dão significado às palavras “inferiores” e é nesta imputação que o direito assume sua neutralidade científica, afora e acima das “ideologias”. As palavras escolhidas pela ciência em Hans Kelsen, já vinham despidas de ideologias classistas ou religiosas e, em Jorge Luis Borges, elas se tornavam arte pela sua estética de conteúdos arbitrários.
Vejam como literatura e direito podem adquirir universalidade, a partir de episódios particulares que, ao mesmo tempo incorporam momentos mais singulares ou mais universais: um episódio singular é, por exemplo, o momento que um torturado perece nas mãos do torturador – forma jurídica dos inquéritos medievais na Inquisição – momento jurídico particular comum à época, que contado por um romancista de talento pode universalizar a redenção do heroísmo moderno, fazendo a fusão do direito com a grande literatura humanista do realismo crítico.
Borges conta que, quando Gabriel Rossetti leu O morro dos ventos uivantes, escreveu a um amigo: “a ação transcorre no inferno, mas os lugares, não sei porque, têm nomes ingleses”. A sentença sintetiza de maneira fantástica todo o impasse do bolsonarismo, no atual período histórico de resistência ao fascismo, num país de heróis e mártires, como o Brasil, onde a reverência europeia à nobreza e às famílias reais se banham em ironia e onde capitães aposentados por problemas mentais, que fariam o horror a Ernesto Geisel e Castelo Branco, tornam-se líderes de uma parte significativa da nação.
Ao revelar que estava dopado pela morfina, naquele interrogatório policial que deveria ser estudado em profundidade para entendermos o subconsciente e o inconsciente do bolsonarismo e do Brasil, da imprensa, dos poderes e dos partidos, que não ficaram estarrecidos com as declarações do ex-presidente, Jair Bolsonaro nos alertou. Suas palavras nos apresentaram o Brasil profundo, mais perto do inferno do que dos ingleses – mais perto do caos do que da idiotia coletiva que nos assolou, que pode restaurar por aqui modelos mais próximos dos campos de concentração do que das metáforas borgianas: mais perto da realidade da morte do que das palavras encadeadas só como beleza, que ora cortejam a alegria da leitura, ora cortejam o desastre da mortandade coletiva.
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